Crítica do
Segundo Caderno de O Globo (4/11/2016)
Crítica/ “Os
cadernos de Kindzu”
Da “Terra sonâmbula” de Mia Couto, o Amok Teatro
encenou os desdobramentos narrativos que o romance desfia no ambiente mítico da
cultura africana, vivido em cenário devastador de guerra. A oralidade literária
do autor moçambicano, que captura a imaterialidade do mágico, se confunde com a
crueza de conflito armado e de perversidades coloniais. Kindzu descreve em seus
cadernos os deslocamentos por terrenos minados e por invasores políticos, assolados
por pragas sociais e desterritorizados da identidade. O percurso, como saga pela
posse usurpada, leva esse homem a se mover para readquirir o espaço vital,
caminhando pela tragédia do presente e a ancestralidade do sonho. Cada passo é
uma história, que sai de dentro de outra e circula pela palavra que se revela como
uma das últimas possibilidades de sobreviver à crueldade do real. O grupo Amok
Teatro, na direção de Ana Teixeira e Stephane Brodt, prossegue com esta nova
montagem a sua investigação da irracionalidade de conflitos, da representação
cultural de etnias e da fabulação poética e mítica. A partir desses planos
narrativos, o grupo compõe um quadro reflexivo, em que vozes, imagens e sons
reproduzem rituais e contrastam violências. Descrever a tentativa de Kindzu reconquistar seu lugar, sugere
à dupla de encenadores mural de uma África profunda, em que o imaginário
impulsiona o ponto de partida da jornada até a imutabilidade da chegada. O
aparato visual para apoiar a crueza do espaço emocional se define pelo
despojamento do figurino em cores terrosas e pretas e nos poucos elementos utilitários como cestos
e caixotes. A iluminação de Renato Machado não resolve bem a cena em sombra. A
música, criação do elenco, avança para além das sonoridades rítmicas para se
apresentar como contrapontos dramáticos que marcam os tempos de memória e de
ação. O domínio dos diretores desse metrônomo cênico, assegura que o
desdobramentos das histórias criem uma envolvência que se aproxima, sem obviedade,
do realismo fantástico. A montagem confirma o prosseguimento da pesquisa do
Amok de um universo multitemático de significados reais e evocações simbólicas.
Em “Os cadernos de Kindzu”, os atores falam com leve sotaque de países da
ex-África portuguesa, não apenas como modo de localizar, mas como emissão de
trajetória antiépica. O elenco está no centro da consolidação das técnicas e
teoria do grupo. Os atores emprestam autoridade às suas interpretações, com
segurança corporal e modulações vocais. Vanessa Dias como a silenciosa Assma ou
a portuguesa Virgínia, faz do corpo o melhor de sua atuação. Sergio Loureiro,
como o pai de Kindzu e o bêbado Quintinho, estabelece ponte entre lembrança e realidade.
Gustavo Damasceno vive o colonizador. Graciana Valladares é a mulher presa à
sua no barco de vidas roubadas. Stephane
Brodt tem forte presença como o indiano. Luciana Lopes, em papéis de matriarcas,
e Thiago Catarino, Kindzu à procura do espaço da identidade, contracenam em
sintonia.