segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Festivais

Mirada 2016
Proposta "animal" de ruptura

Pela quarta vez,  a cidade de Santos é ocupada pelo festival Mirada que, bienalmente, reúne produção teatral latino-americana, ibérica e brasileira com a curadoria do Sesc São Paulo, atenta à diversidade de propostas que surgem nessa latitudes. Este ano, a Espanha é o país referência com destaque para o polêmico encenador argentino, radicado em Madrid, Rodrigo García, que projeta cena de contestação formal ao consumismo e a dogmas religiosos, e que em “4”, visto nesta edição do Mirada, até calçou sapatos em galinhas. Da Espanha também veio “Please continue, Hamlet”, que coloca o personagem título no banco dos réus para ser julgado pela plateia, e que já foi apresentado no Rio no festival carioca Tempo. E ainda “Brickman Brando Bubble Boom – BBB”, mistura de vídeo-arte e brinquedos adolescentes. Da Bolívia, pôde ser visto o interessante monólogo “Hejarei – Imortales”, um mergulho na contraditória realidade do país. Do Brasil, pelo menos duas estreias – “A tragédia Latino-Americana e a Comédia Latino-Americana. Segunda parte,” do diretor Felipe Hirsch e “Leite Derramado”, adaptação teatral de Roberto Alvim para o romance de Chico Buarque de Holanda. 
Imprecações diante do muro de protesto (foto: Patricia Cividanes)
Desde a impactante apresentação de “Puzzle” na Feira do Livro de Frankfurt, em 2013, que Felipe Hirsh desdobra a série de textos, literários poéticos, políticos e paródicos, em espetáculos de  sofisticação visual (sempre com cenografia intervencionista de Daniela Thomas) e provocativos estímulos (a palavra se faz audível em atos que as desdobram em discursos políticos). “A comédia latino-americana” é a sexta montagem nesta linha, que ainda está em processo de criação, e cuja estreia está prevista para outubro em São Paulo. Mesmo com partes inconclusas, é possível determinar que a estrutura básica desta seriação de textos englobados em temas definidos por construção de quebra-cabeças, permanece sólida como proposição. Nesta atual comédia, em sequência à anterior tragédia, as classificações se misturam num mesmo caldeirão fervente da geografia sócio-literária continental. Na primeira parte, autores de protesto emprestam suas palavras de “agit-prop” à economia, como o uruguaio Leo Masliah em “Neoliberalismo”, embaladas por toada política e música da ótima banda com sonoridade de cabaré berlinense dos anos 1930. De Reinaldo Moraes é a parodia da carta de Pero Vaz de Caminha, atualizada e revista pelo distanciamento do tempo e a permanência das mazelas fundadoras da nacionalidade. Poemas em espanhol, canção que ressoa subserviências, cortina sobre as reações de confronto com a plateia, se sucedem como desdobramentos da admiração seletiva de Hirsh pelos fragmentos textuais. Na segunda parte, somente essa admiração explica a escolha de “Experimento sobre a liberdade total”, do argentino Pablo Katchadjian, que ainda em estágio de ensaio (os atores se movimentam com os textos nas mãos), não pode ainda ser avaliado em sua totalidade na sua aclimatização cênica. Mas já é perceptível o seu caráter mais literário do que teatral, e avaliar que seus diálogos irônicos e tautológicos, se avolumam em palavras, que se tornam soltas e repetitivas e têm dificuldade em encontrar seu sentido maior na recepção já cansada e inevitavelmente perdida dos espectadores desse experimento inflado de influência tardia de Samuel Beckett. 
Imagem de um passado duradouro


Não se trata de medir a fidelidade da adaptação de obra literária para o teatro, mas dimensionar essa medida à leitura cênica a que se propõe. “Leite derramado” é um romance de dupla projeção. O longevo Eulálio, que completa 100 anos, vive os estertores da existência em hospital público, refazendo a trajetória de sua vida, pessoal e familiar, que se confunde com os caminhos, perversos e duradouramente persistentes, da vida nacional. Testemunha de variadas manifestações de poder, porta-voz de preconceitos seculares, ator na representação da decadência social, e vitima de sua  paixão por uma mulher, esse homem delira nas lembranças que desnudam a si e ao país. Na transcrição de Roberto Alvim, desaparece toda a ambientação para se concentrar nos símbolos. O caráter individual esfacela-se em vagas referências à narrativa original, mas não se apropria da situação (a senilidade às portas da morte) ou reproduz a interioridade com seus sentimentos (a mulher amada do livro desaparece do palco). O intimismo se transfigura em exaltação épica, em sinais de uma brasilidade figurada em estereótipos e sonorizada com trilha, entre ilustrativa e obviamente crítica. Roberto Alvim torna cifrada a transcrição, em cenas que se mostram quase autônomas e independentes como imagens apenas sugeridas, dispersas como palavras sem contexto. Juliana Galdino, imponente e hierática num retrato de  figura da Velha República, é a intérprete de encenação alegórica de um pensamento moribundo que ressoa como brado retumbante.