quarta-feira, 27 de junho de 2018

Temporada 2018


Crítica/ “Tchekhov é um cogumelo"
"As três irmãs"sob a visão onírica-alucionógena 

A encenação de André Guerreiro Lopes para “As três irmãs” de Tcheckhov se distribui por narrativas, até certo ponto, excludentes. Na primeira abordagem, o diretor surge em cena para deixar ver suas ondas cerebrais projetadas como convites aos espectadores a penetrar em uma cena sensorial. Em seguida, vídeo-entrevista com José Celso Martinez Correia historia a sua versão da peça, que dirigiu em 1972 e estabeleceu ruptura interna no Oficina e que foi concebida sob ação de mescalina. Por fim, fragmentos do texto tcheckhoviano são vistos como quadros vivos, capazes de unificar a montagem em torno de sons e imagens, num jogo onírico de percepções e pontuações da obra inspiradora. Essas três camadas, ainda que às vezes se atropelem nos muitos estímulos que propõem, criam envolvência anímica que abriga niilismo, impotência, imobilismo e fatalidades da existência das irmãs em busca de uma Moscou inalcançável. Se a exibição cerebral se aproxima da magia, a participação visual de Zé Celso só confirma o seu domínio, na palavra e no palco, do ato cênico. Disseca a construção do espetáculo falhado e toca no entrecho original, tornando possível acompanhar o que se verá, mesmo sem conhecer o desenvolvimento da ação. O cogumelo, que complementa o nome do autor no título, é uma dúbia referência: à proposição alucinógena de um teatro dos sentidos e de evasão do real, e à figura explosiva, atômica, que detona o realismo clássico. Envoltos em uma tela enevoada, que separa o proscênio do centro do palco, os quadros se sucedem, bordados pelos fios desencapados de continuidade, rearticulados em tempos paralelos e trajetórias espaciais, que resultam no rompimento do tênue cortinado para se abrir em batucada de alusivo brasileirismo. A delicada tessitura de “Tchekhov é um cogumelo” ultrapassa a visualidade radical, para justifica-se pela integridade de uma concepção coerente na diversidade dos estilos narrativos. O elenco – Helena Ignez, Djin Sganzerla, Michele Matalon, Roberto Moura, Samuel Kavalerski, Fernando Rocha e André Guerreio Lopes – deriva os diálogos em monólogos interiorizados e movimentos desestruturantes, que compõem com a cenografia e os figurinos de Simone Mina e a música de Gregory Silvar, experiência vitalizante do grupo paulista Estúdio Kusco-fusco.

quarta-feira, 20 de junho de 2018

Temporada 2018


Crítica/ “Nuon
Impacto entre o desprezo da razão e a sobrevivência encantatória
Há uma confluência entre o épico e o poético em “Nuon”, montagem em que o grupo curitibano Ave Lola trata do extermínio de dois milhões de cambojanos pelo regime do Khmer Vermelho nos seus quatro anos no poder, entre 1975 e 1979. O príncipe deposto Sihanouk faz sua mea-culpa pelo erro no exercício da autoridade diante da dizimação de um país pela guerra que separa irmãs, suprime a liberdade e deixa rastro de desalojados da identidade, refugiados do horror da violência do poder. A ativista, cujo nome intitula essa saga sobre a insanidade da força, revive em três épocas distintas a violência contra a dignidade humana no ponto mais essencial da sua expressão, a impossibilidade da manifestação plena da vida. A autora e diretora Ana Rosa Tezza ambienta a historicidade política e a secularidade cultural na noite dos mortos cambojana, quando são celebrados os ancestrais. Interpretada em seus significados sócio-políticos e revestida de sua simbologia estético-milenar, a cena contrasta abjeção com harmonia, sem que essa dicotomia enfraqueça o impacto da razão e encubra o peso do encantatório. Ana Rosa quebra a fronteira da reflexão delimitada, integrando-a ao território da linguagem teatral expandida. Num artesanato delicadamente sensorial, se ritualiza o ódio com a energia da sobrevivência, desarmando a chave do discurso direto, abrindo o portal da sensibilização lúcida. A narrativa onírica, que interpõe planos e tempos, pode parecer um tanto elíptica na forma, mas revela sensibilidade no sentido. A cenografia de Fernando Marés se destaca pelo pórtico com elementos orientais que dão imponência ao espaço de praticáveis, que descentralizam a ação. Beto Bruel e Rodrigo Ziolkowski desenham suave atmosfera de luz. O figurino de Eduardo Giacomini tem a qualidade de criação muito além da pesquisa. As máscaras de Maria Adélia encorpam o visual com alto nível de execução. A composição musical de Mateus Ferrari, que ao lado de Breno Monte Serrat toca tambores e sopros de madeira, atinge sonoridade de viés asiático e oportuno contraponto dramático. Em clima ritualizado, os atores desempenham, tal como celebrantes, coreografia de palavras, usando o corpo como movimentos de vida e morte. O elenco – Evandro Santiago, Helena Tezza, Janine de Campos, Marcelo Rodrigues  e Regina Bastos – confirma o rigor do coletivo paranaense de inspiração no Théâtre du Soleil e ressalta a integridade criativa de um trabalho de qualidade.

domingo, 17 de junho de 2018

Temporada 2018


Crítica do Segundo Caderno de O Globo (17/6/2018)

Crítica/ “O Homem de la Mancha
Quixote na figura de musical clássico

O musical de Dale Wasserman, com música de Mitch Leigh e letras de Joe Darion, que estreou na Broadway em 1965, ganhou a etiqueta de “clássico”, não só pelo sucesso popular, como pela canção “Um sonho impossível”, que foi ampliada para além do palco. Chegou a cinema, com direção de Arthur Hiller, em 1972, mesmo ano em que começou temporada no Brasil, com encenação de Flávio Rangel e versão das canções por Chico Buarque e Ruy Guerra. Nos papéis centrais, Bibi Ferreira, Paulo Autran e Grande Otelo. O histórico de durabilidade dessa adaptação aos cânones dos musicais da obra de Miguel de Cervantes permite que, depois de tantas montagens no mercado mundial, permaneça íntegra na sua concepção. Na direção e adaptação de Miguel Falabella, nada se perdeu e muito se ganhou. A transposição da trama para um manicômio, acrescentou comentário cênico aos delírios do Cavalheiro de Triste Figura e ao ambiente inquisitorial de origem. Seguindo a trilha tradicional do binômio emoção-drama, em que o gênero se equilibra, Falabella integrou uma suavidade, quase enternecedora, a ação que busca arrebatar. Há um tratamento abrasileirado na maneira como expõe, trabalhando a procura da emotividade em compasso com a exaltação. O critério e cuidado do adaptador e a generosidade do tempo com o viço da obra, mantêm nesta montagem o prazer de assistir a um espetáculo que estabelece comunicabilidade fluente com a plateia. Os efeitos de cenário, iluminação, coreografia, figurino e canto, centrais nos protocolos das comédias musicais, estão todos administrados por direção que os projeta em semitons. O cenário, de grandiosidade funcional, é iluminado com misto de sombreado colorido e luminosidade feérica. O figurino de Claudio Tovar se inspira, com alto padrão de criatividade, nas telas e roupas de Bispo do Rosário. A direção musical de Carlos Bauzys é precisa e vibrante, com sensibilidade às modulações das sonoridades. A coreografia de Kátia Barros acompanha a circularidade do cenário com as rodas formadas pelo  conjunto dos atores-bailarinos. As atuações do trio – Cleto Baccic (Quixote), Sara Sarres (Aldonza) e Jorge Maya (Sancho) – valorizam e garantem a vitalidade de um musical que ainda pulsa.

quarta-feira, 13 de junho de 2018

Temporada 2018


Crítica do Segundo Caderno de O Globo (13/6/2018)

Crítica/ “Vim assim que soube”
Foco sobre situações terminais

Uma doença terminal aproxima finitudes de inícios. Autor de texto teatral descreve a proximidade de sua morte ao lado da atriz amiga desde o início de carreira, relembrando noitadas, ensaios e espetáculos. Em mergulho emocional anárquico e balanço biográfico-profissional, a dupla revive, para além do que a tumultuada amizade construiu, a celebração de tantas experiências, a impermanência do ofício e o funeral ao tempo vivido. Pouco resta quando da iminência da perda é total. Memória, sentimentos e frustrações ocupam a cena enquanto relata de si, mirando o palco, espaço escolhido para exibir múltipla instabilidade. Viver morrendo é a metáfora da dramaturgia de Renato Carrera para “Vim assim que soube”, que se aplica à inconstância das relações e à resistência ao efêmero daqueles que fazem da representação a arte de assinalar o mundo. As proposições do texto nem sempre se clarificam pela carga excessiva de dramaticidade que é atribuída a diálogos em tons sentenciosos ou expostos como desabafos. Carrera mostra desejo de gritar, deixar explícito o rumor que parece o ter motivado a escrever esse drama-psicológico-memorialístico. Marco André Nunes amplifica o grito, estendendo o seu alcance a meios expressivos (projeções, trilha sonora, cenografia, atuações) desentoados. A montagem ressoa barulhenta, interferida de ruídos que estabelecem disritmia narrativa,  alternada de subjetividade e exibição. O diretor investe na imagem expositiva, atropelando o ritmo interior da palavra, desfazendo ainda  mais a instável estrutura sobre a qual a encenação tende a escorregar. A cenografia de Daniel de Jesus, ao deslocar para a lateral a geometria do olhar, procura ambientação abstrata que mantenha ilusória as referências de realidade. A iluminação de Renato Machado explora, contidamente, a linearidade do cenário. A trilha sonora de Felipe Storino mais ressalta do que sublinha. E o figurino de Nina Costa Reis é notado pela visibilidade apagada em contraste com a veste intrigante do ator na última cena. Cris Larin, em contraponto bem dosado, rebate a intensidade impetuosa do seu companheiro de elenco. A atriz desempenha, com domínio do humor e preparo físico, o quadro da improvisação na escola de teatro. Renato Carrera se agarra, como ator, ao que escreveu em irrestrita tradução física e emocional. A adesão é integral. A vocalização, sincera.

quarta-feira, 6 de junho de 2018

Temporada 2018


Crítica do Segundo Caderno de O Globo (6/6/2018)

Crítica/ “Rose”
Merenda escolar expõe a divisão da cidade 

Cecília Ripoll transforma a merendeira Rose em ponto de ligação entre o refeitório de escola de periferia e a sala de visitas de empresário da Zona Sul. Há anos na função de aguar o feijão dos alunos e partilhar a escassez das refeições, começa a desviar mantimentos da casa em que trabalha aos sábados. Com a chegada de um novo diretor, que descobre o milagre da multiplicação dos pães e receoso de que se revele a transferência de recursos, denuncia a empregada à patroa. Nesta trama, em que divisórias sociais demarcam desigualdades, a autora retrata, com realismo de denúncia, a geografia dos contrastes. Acrescenta os filhos das famílias, o frágil Antônio Pedro e a rebelde Maria Juliana, ao quadro bipartido, reproduzido por gerações e unificado na permanência. Os diálogos naturalistas exibem as mazelas da cidade partida ao encontro do embate final, redentor e libertário e um tanto comprometedor com a veracidade e coerência dramatúrgica. Com convergências e similaridades, aparentes e inspiradoras, “Rose” lembra “Conselho de classe”, texto de Jô Bilac, que a Cia. dos Atores estreou em 2013. Não só pela mesma ambientação, como pela exposição de fraturas de políticas educacionais de sucessivos governos. Vinícius Arneiro situou a montagem em espaço semelhante a sala de aulas. Cadeiras enfileiradas integram os diversos cômodos (salas, colégio, quarto, banheiro) e apoiam a coreografia das atuações. O diretor movimenta os atores em balé de rupturas, representado por gestos que se dissociam do sentido da palavra para ganhar significado crítico. Trejeitos e rostos contraídos, saltos e cabelos puxados funcionam em alguma medida para desordenar a narrativa realista e atenuar visão dualista e simplificadora. Se a princípio, resulta, acaba por se fazer desgastante pelo excesso. Quando a dramaturgia fraqueja, em especial na última cena (confronto da merendeira com o político), fica evidente a inadequação da fúria reivindicatória à pusilanimidade grotesca. Na linha de interpretações corporais Thiago Catarino e Natasha Corbelino demonstram maior disponibilidade à entrega física. Ângela Câmara, ao contrário, é quem menos realiza com destreza a dança das falas. Márcio Machado concentra a agitação dos demais atores na fixidez da máscara facial. Dida Camero compõe, desde a manipulação dos dedos ao ar bonachão da mímica afetiva, uma Rose de perfil generoso.