quarta-feira, 20 de junho de 2018

Temporada 2018


Crítica/ “Nuon
Impacto entre o desprezo da razão e a sobrevivência encantatória
Há uma confluência entre o épico e o poético em “Nuon”, montagem em que o grupo curitibano Ave Lola trata do extermínio de dois milhões de cambojanos pelo regime do Khmer Vermelho nos seus quatro anos no poder, entre 1975 e 1979. O príncipe deposto Sihanouk faz sua mea-culpa pelo erro no exercício da autoridade diante da dizimação de um país pela guerra que separa irmãs, suprime a liberdade e deixa rastro de desalojados da identidade, refugiados do horror da violência do poder. A ativista, cujo nome intitula essa saga sobre a insanidade da força, revive em três épocas distintas a violência contra a dignidade humana no ponto mais essencial da sua expressão, a impossibilidade da manifestação plena da vida. A autora e diretora Ana Rosa Tezza ambienta a historicidade política e a secularidade cultural na noite dos mortos cambojana, quando são celebrados os ancestrais. Interpretada em seus significados sócio-políticos e revestida de sua simbologia estético-milenar, a cena contrasta abjeção com harmonia, sem que essa dicotomia enfraqueça o impacto da razão e encubra o peso do encantatório. Ana Rosa quebra a fronteira da reflexão delimitada, integrando-a ao território da linguagem teatral expandida. Num artesanato delicadamente sensorial, se ritualiza o ódio com a energia da sobrevivência, desarmando a chave do discurso direto, abrindo o portal da sensibilização lúcida. A narrativa onírica, que interpõe planos e tempos, pode parecer um tanto elíptica na forma, mas revela sensibilidade no sentido. A cenografia de Fernando Marés se destaca pelo pórtico com elementos orientais que dão imponência ao espaço de praticáveis, que descentralizam a ação. Beto Bruel e Rodrigo Ziolkowski desenham suave atmosfera de luz. O figurino de Eduardo Giacomini tem a qualidade de criação muito além da pesquisa. As máscaras de Maria Adélia encorpam o visual com alto nível de execução. A composição musical de Mateus Ferrari, que ao lado de Breno Monte Serrat toca tambores e sopros de madeira, atinge sonoridade de viés asiático e oportuno contraponto dramático. Em clima ritualizado, os atores desempenham, tal como celebrantes, coreografia de palavras, usando o corpo como movimentos de vida e morte. O elenco – Evandro Santiago, Helena Tezza, Janine de Campos, Marcelo Rodrigues  e Regina Bastos – confirma o rigor do coletivo paranaense de inspiração no Théâtre du Soleil e ressalta a integridade criativa de um trabalho de qualidade.