domingo, 22 de dezembro de 2024

Temporada 2024 / Razão dos tempos

“Deserto”: direção Luiz Felipe Reis 


A temporada teatral de 2024 pode ser considerada a mais consolidada, depois dos anos em que palcos e bilheterias estiverem interditados pela pandemia. Portas abertas, alguns programas de apoio reeditados, convivência pacificada com as redes sociais (o boca-a-boca, a publicidade tradicional, a desaparecida crítica de jornal e até a venda de ingressos emigraram para a internet), recompuseram a malha de funcionamento do panorama. Pequenas mudanças e grandes ajustes restabeleceram os papéis que a cena carioca parece desempenhar a partir de desafios de novas formas de acomodação. Mas lançam muitas perguntas de difíceis respostas. Qual o lugar do teatro diante da aculturação digital e das banalizações dos comportamentos? Há público identificável para além de estatísticas qualitativas de espectadores comparado com medições anteriores? Que gênero ou estilo de encenação aponta alguma tendência nas produções desse ano? Para que direção se encaminha a suposta nova realidade (“o novo normal”), sob qualquer especulação diante do imponderável do que pode vir a se desenhar? São dúvidas que acompanham, há tempos, as temporadas, e que se ampliam no momento em que o teatro precisa se ajustar (ou desprender-se) de variadas condicionantes. O que talvez se torne imperioso perguntar, é de como a criação fica interferida nesse quadro que já se prenunciava há mais de uma década. O dito teatro comercial como sobrevive? Quais as bases das investidas da dramaturgia contemporânea na renovação? Ainda é possível dimensionar plateias por preferências? As pautas identitárias e o ativismo têm fôlego para  encontrar paralelismo com expressão cênica? A atividade parece estar se amoldando, pelo menos em parte, aos atuais desafios em relação aos pré e pós pandemia. A permanência de uma peça em cartaz é de  pouco mais de quatro semanas. Essa média baixa pode ser explicada pela cautela com que as produções enfrentam custos, disponibilidade das casas de espetáculo, e ponderações sobre os contornos e volume das plateias. Algumas montagens, na maioria comédias (“Agora que são Elas”, “Duetos”) rompem a restrita duração em cartaz. Outras mais antigas (“In on It” e “As Crianças”) voltam para tentar reencontrar o fluxo de público do passado.. Diretores com presença referencial na década de 1990, Gerald Thomas (“O Traidor”) e Moacir Góes (“O Segredo de Brokeback Mountain” e “Jesus nos Últimos Dias”) reaparecem em discretas exibições. A enxurrada de musicais, que se supõe tenham criado relações diretas com patrocinadores e fidelidade de público, se abrigam em endereçõs quase residenciais: no Centro (Teatro Riachuelo) e na Barra da Tijuca (Multiplan” e Teatro das Artes). E se apresentam em estilos múltiplos, oscilando da Broadway (“Querido Evan Hansen”) a Hollywood (“ Hairspray”), de biográfico (“Tom Jobim Musical”) a adaptado (“Viva o Povo Brasileiro”). A produção em quantidade se manteve próxima a de 2020. Muitas estreias aconteceram, a partir da liberação de modestas verbas de editais após o aprisionamento dos desérticos quatro anos. Teatros que estavam ignorados (Glauce Rocha, Dulcina, CCJ), fechados (Ziembinski, Correios), reformados (CCBB, Sergio  Porto, Carlos Gomes, João Caetano), e escondidos(Espaço Abu, Sala Preta, Sala Eletroacústica da Cidade das Artes) entraram no circuito. Se reabertos ou reintegrados, é porque houve procura, não apenas de público, mas de demandas voluntaristas dos que “precisam” estar no palco. A modesta ambição das produções, sob quaisquer perspectivas, acaba por reduzi-las a voos curtos de asas partidas.  Os monólogos, provavelmente, mais atrelados, a questões financeiras do que estéticas, proliferaram em escala ascendente. Atores veteranos ( Othon Bastos -  “Não Me Entrego, Não!”, Irene Ravache – “Alma Despejada”), e citações evocativas (“Jandira - Em Busca do Bonde Perdido”), dominaram em arranjos cênicos econômicos. A cota anual de textos de Nelson Rodrigues  sofreu pequena baixa, com apenas dois textos do autor (“A Falecida” e “Bonitinha, mas Ordinária”). A persistência na  busca de trabalhos com força criativa, encontrou assinaturas, que reafirmam o compromisso - com as biografias. Daniela Pereira da Silva confirma em texto poético - “A Menina Escorrendo dos Olhos da Mãe” - sensível construção de sua dramaturgia. Exemplar que demonstra a “maturidade” em repertório autoral, impulsionado por vozes dissonantes e títulos provocativos: “Não Existem Níveis Seguros Para Consumo de Drogas”, “Estragaram Todos os Meus Sonhos,” “Por Uma Vida Um Pouco Menos Ordinária”. Yara de Novais assinou três montagens de bom acabamento. Parceira de longa data da atriz Debora Falabella, Yara foi responsável pelas interpretações precisas da atriz, tanto em “Prima Facie”, quanto na volta de “Neste Mundo Louco”. Monólogos baseados em  “playwriting” eficiente, a direção assegurou à intérprete condições para explorar o seu melhor, Em “Lady Tempestade”, numa linha falsamente desconstrutiva, transita pelos espaços de narração/ação a serviço do temperamento  de Andrea Beltrão. Luiz Felipe Reis em “Deserto”  refina seu universo cênico, cultivado e desenvolvido em apenas uma década, composto por “desertos e ruínas do mundo em que vivemos”. A firmeza  de sua dramaturgia cênica (de “A Inútil Biografia de um Homem Qualquer”  (2014) a “Galáxias” (2018), passando por “Tudo que Brilha no Escuro” (2022), certifica  Luiz Felipe como diretor com idioma próprio. A pandemia dividiu, planetariamente, a vida entre dois tempos. As memórias do antes, repercutem no depois, com sentimentos de perda, que se misturam a incertezas de projetos futuros. O teatro carioca, tão exposto a percalços, caminhou este ano, hesitante e inseguro, sem saber os rumos a seguir, pisando solo minado de dúvidas. Como ensina o ditado popular: “O tempo é o senhor da razão.” Mas em que direção ir, se o tempo perdeu a razão.   


sexta-feira, 2 de agosto de 2024

Felipe Hirsch e o Tempo Cênico

 

  

       (“Agora Era Tudo Tão Velho” – 2024)

“Agora Era Tudo Tão Velho – Fantasmagoria 4” é o título da mais recente encenação de Felipe Hirsch, vista há pouco em São Paulo. Tempos que se confundem, ilusão dos efeitos mágicos são o material que o diretor manipula fragmentos literários e vozes dissonantes que se constroem no palco como sombras do agora e luzes do passado. Síntese-balanço de uma dramaturgia cênica única, de grafia própria e linguagem com assinatura, o espetáculo converge para refinada maturação dos meios expressivos do encenador. Textos de autores tão semelhantes por suas dissonâncias, reúnem-se numa mesma listagem narrativa: 

- Paulo Leminski (“No mundo burguês, a obra de arte só pode ser duas coisas: ornamento e mercadoria. A burguesia saudou a liberdade da arte, comprando-a.”/“E obras de arte são rebeldias. Sua manifestação na linguagem. E obras de arte chamamos poesia, inestimável “inutensílio.“)
   
- John Cage (“Existe algo que seja o silêncio? Será que tem sempre alguma coisa para ouvir, jamais sossego e paz? Faz sentido perguntar porquê?”)

- Caetano W. Galindo e Guilherme Gontijo Flores (“Se nada é de verdade, eu preciso estar aqui, agora, real, na frente de vocês. Mas eu preciso ser, eu preciso dar sentido, ter sentido. Eu preciso ser uma peça.”)

- Caetano W. Galindo (“O princípio de que é a ideia de que se uma arma carregada aparece em cena, em um determinado momento, de uma peça, ela deve disparar até o final da peça. / ...porque não há um final da história. Não há uma conclusão./ ... Podem aplaudir agora. Convocado apenas pra fazer esse rumor ali, esse eco de que a peça existiu. Eco é algum nível de fantasmagoria, né? Em algum nível, a plateia, em boa parte do teatro, é uma fantasmagoria. Pro bem ou pro mal. Agora fiquei me perguntando muito sinceramente o que seria eco para a gente, para a nossa cultura.”)

-  “Bang Bang” (1971), de Andrea Tonacci (Filme que subverte técnicas, gêneros narrativos, satirizando cada um deles, pela superexposição e exagero.)

Ouve-se, repetidamente, ao entrar no teatro, sons fracionados, em um embaralhar de pistas (a voz de Elza Soares, frase de canção que diz; “eu quero desistir”). Embaralham-se ruídos e palavras numa sequência partida a que o espectador será envolvido em mais de duas horas. Confrontado  como ouvinte de palavras e situações em que arte, dúvidas, perplexidades e o sentido da existência são exploradas como desmonte de múltiplas narrativas cênicas. O teatro é quebrado na expressividade da sua linguagem, reforçado na  integridade comunicativa de sua rebeldia poética, Cenas se sucedem sem  “lógica” narrativa, conduzidas pela palavra selecionada de autores que descrevem sentimentos do mundo e da arte, atualizados pelas incertezas contemporâneas.  O que o espectador tem como  permanente neste mergulho no atual, é o passado e presente do teatro. Vários e discrepantes meios narrativos são experimentados e lançados à plateia, ora como propostas estéticas, ora como meios persuasivos de atração/provocação. São cenas em sequências embaralhadas, que se concluem em si mesmas, algumas vezes, ou vão se reencontrar em momentos díspares. Um exemplo: um ator solitário no palco, diz fazer 32 perguntas, que, verdadeiramente,  são mais de 150, repetidas numa mesma inflexão. Percebe-se o movimento de impaciência crescente do espectador, até que alguns poucos deixam, ruidosamente o teatro. O efeito de tantas perguntas (“Não parece besteira continuar a fazer perguntas quando há tanta coisa urgente de verdade por fazer?”) sem respostas conclusivas. Corte: cenário mambembe para interpretações explodidas.  O esquete que reproduz de filme-desbunde-caótico de década de 1970, se encaixa na frequência das oscilações e temperaturas do espetáculo, São alternâncias de ritmos cênicos e quebra de expectativa de encontrar alguma linearidade narrativa, que apoie a estrutura do espetáculo. A palavra fragmentada sustenta o fluxo teatral, insinuante, recortado, provocador, amargamente poético, conduzindo  a plateia a assistir uma arte tão antiga e permanente, como o teatro, ser confrontada com o presente, inquietante, duvidoso, oco, sem perspectivas. (“É preciso continuar, não consigo continuar, eu vou continuar.”)   

 Cenas  do diretor


Quase que por contraste, o diretor Felipe Hirsch repete a fórmula que o acompanha há anos, mais cristalizada a partir de “Puzzle” (2013), deixando entrever o domínio dos meios que asseguram assinatura indelével às suas encenações. Se de início já experimentava o que viria s ser o seu indiscutível universo cênico (“Por um Incêndio Romântico”, 1999), depuraria ao longo da carreira sua gramática na dezenas de espetáculos teatrais, ópera (“Orphèe”), e investidas no cinema. Inequívoco admirador da cultura anglo-saxã, em especial aquela que se manifesta através da ficção e da tela, além da música pop, seja como base dramática ou linguagem, Hirsch, como cronista (escreveu no jornal O Globo) estabelece com esse universo cultural de eleição, vínculos à memória e sentimentos geracionais. Sua criação converge para a vivências de seu tempo, relacionando dores contemporâneas à individualização de sentimentos, e assim ressoar o silêncio coletivo. Seu repertório demonstra o vigor de traços que penetram nos escaninhos da cena e nos desafios do pensamento. 


 (“Lazarus” – 2019)

“Lazarus” tem forma muito própria e peculiar de se perceber como musical. O puzzle músico-ficcional em que o inglês David Bowie acondiciona seu repertório de letras esquivas ao filme “0 Homem que Caiu na Terra”, do qual foi o protagonista, pode ser visto como detonador de memórias de “impermanência e morte”. Nada que se pareça, estritamente, a uma narrativa do gênero (ação e canções), muito menos a um show com citações cênicas. É tudo isso, e também mais alguma coisa: estranha, dissonante, mutante, andrógina, cheia de representações intrigantes, como os muitos rostos maquiados de Bowie. “Lazarus” confirma as características de Felipe Hirsch com assinatura legível. Os meios expressivos são sofisticados e tratados de modo serial, numa sequência de quadros que se compõem como painel de sensibilização. do-se ao jogo cênico. A procura é pela fruição de um certo universo, independente da coerência e da empatia pela recepção. O texto é secundário como história e coadjuvante como narrativa, integrando-se ao jogo cênico. A procura é pela fruição de um certo universo, independente da coerência e da empatia pela recepção. O que é acentuado, está em paralelo ao olhar em busca de significados. É provável, que o espectador que desconheça David Bowie, possa assistir a “Lazarus” como um espetáculo realizado num universo paralelo. Mas até ele, certamente, viverá a experiência de ser levado por construção cênica de bases sólidas, e instigado pelo prazer de um mergulho na “impermanência e morte” de um tempo. O nosso.


(“Fim” -  2019)

É na finitude que a contemporaneidade se torna ainda mais inescapável, e de que trata o diretor Felipe Hirsch em “Fim”. Fronteiras da arte, história, linguagens, tempos, se diluem nos processos de criação, vividos como enfrentamentos em batalhas que, a meio, já apontam para derrotas. O exercício da invenção parece esgotado pela ausência de perspectivas menos nebulosas, num momento em que experiências de buscar novos códigos esbarram na impermeabilidade da recepção. Como em “Puzzle”, que marcou viragem na carreira de Hirsch, a montagem se arma em quebra-cabeças de quatro quadros, escritos pelo argentino Rafael Spregelburd. Em “O Fim da História”, grupo teatral algo mambembe, ensaia um clássico qualquer, quando é exposto a incêndio destruidor, e condenado à repetição e comprometido na sua sobrevivência pelos espectros da atualidade. Mais do que posição niilista, que o título promete e a encenação não compartilha integralmente, “Fim”  é desabafo-manifesto de um corte sem suturas.


 (“Não sobre o amor” – 2008)

‘Felipe Hirsch é cirúrgico na construção ascética de “Não sobre o amor”, do poeta russo Viktor Shklovsy, em espetáculo destituído de firulas dramáticas e carregado de rigor estético. De formalismo detalhista, a montagem traduz o texto com o mesmo distanciamento  contido nas cartas entre o poeta e a amada, expressando o que aparenta ser nostálgico em emoção verdadeira das lembranças.  Ainda que o diretor tenha conduzido a cena de maneira tão racional, emerge real emoção que se impregna do vácuo em que o personagem flutua, sem eixo que o localize como exilado de si mesmo. 


 (“A memória da água” – 2001)

“Em A memória da água”, texto da inglesa Shelagh Stephenson, as personagens voltam sempre ao passado para encontrar por lá justificativas e, desse movimento, entre tempos, se valem  das lembranças, vagamente verdadeiras. Felipe Hirsch, coerente como  perspectiva de direção, se volta para a universo cênico que volatiza a memória. A tela transparente que, separa o palco-plateia, cria névoa no olhar e teia fina de atração e repulsão. O diretor ignora os resquícios melodramáticos e aponta para as entrelinhas do riso agridoce e o afogamento melancólico.


(“A vida é cheia de som e fúria” – 2000)

A  escolha da obra literária de Nick Horny para a transposição cênica de Felipe Hirsch parece obedecer às possibilidades que o romance oferece como trilha musical para o estado um tanto inercial do personagem diante da vida. A adaptação reproduz as “repetições” da narrativa da existência estática e de quem projeta a auto-piedade em longo e ensimesmado monólogo. A direção imprime movimento cinematográfico a roteiro de recorrências, com cortes nervosos e reiterações de cenas, com voltas na ação como se as imagens estivessem sendo editados em um filme.             

 “Por um Incêndio Romântico “ -1999

Terence McNally ao criar jogo entre os desígnios místicos que comandam as ações de um deus humanizado e o drama psicológico de mulheres em balanço existencial, estabelece choque cultural, responsável pelos aspectos de humor do texto. A montagem de Felipe Hirsch revela saudável  insatisfação com a linearidade, já que cria espaço quase abstrato, a ponto de deixar impressão de que se inspirou em imagens, concepções que remetem a referências bem evidentes: de Bob Wilson a Gerald Thomas.










  



       

sexta-feira, 1 de março de 2024


Plateia Privilegiada

Com o desaparecimento da crítica jornalística profissional de teatro, engolida pelas crises econômica, formal e de leitores da imprensa, a atividade sumiu das publicações remanescentes. Acuada pela interferência fatal das mídias sociais, a prática se experimenta no digital, sem ainda encontrar mediação entre a linguagem acadêmica e voluntarista, e  a equalização da comunicabilidade. A última geração de críticas, que por décadas, mantiveram colunas em jornais, lançam em livros, a longa, persistente, quase contínua, análise, reflexão e registro de temporadas que compõem a história da cena nacional por mais de 50 anos. Coletâneas que selecionam a produção e o pensamento de quem vivenciou  a atualidade da notícia e a prestação ao consumo do leitor.  E sustentou, muitas vezes, num equilíbrio delicado, a consciência da impermanência do ato teatral e o cultivo e respeito à sua própria integridade intelectual na relação com as plateias de cada tempo. De gerações diferentes, mas contemporâneas em grande parte de suas vidas profissionais, Mariangela Alves de Lima e Barbara Heliodora assinam a autoria de coletâneas que reúnem parte de seus extensos exercícios críticos. A paulista Mariangela, de 1972 a 2010, sempre em  O Estado de São Paulo; a carioca Barbara, desde 1957, no extinto Tribuna da Imprensa, e em veículos, como Jornal do Brasil, revista Visão, (todos também desaparecidos) e em O Globo, até um ano antes de sua morte, em 2015. Em “Na Plateia” (Edições Sesc), das 557 críticas publicadas no Estadão, a organizadora Marta Raquel Colabone selecionou 290, modulando painel que condensa refinado conhecimento de quem se pautou por sobriedade no estilo da linguagem e na acuidade da reflexão. “Barbara Heliodora – Escritos Sobre Teatro” (Perspectiva),  organizada por Claudia Braga, se divide pelo tempo e percurso da crítica pelas diversas atuações no campo do teatro: textos teóricos, vida teatral, teatro e estado,  e críticas (de 1957 a1994).   


Em conversa despretensiosa, diretor teatral comentava: “nunca se sabe se a Mariangela gostou do espetáculo.” É verdade, mas desde que se entenda a crítica de jornal apenas como indicador para assistir ao espetáculo. Se lida sob as próprias ferramentas de que o texto se utiliza e como espelho analítico que o conhecimento reflete, a obra de Mariangela é de translúcida inteligência, linguagem clara (seu texto é impecável) e erudição, vivificadas por escrita não-professoral. Cada avaliação parte da integralidade do pensamento acurado, que se individualiza pelas características dos gêneros, e passagem de tempo. Com fidelidade à primazia do “literário”, mais evidente no início das publicações, atenta às investidas contemporâneas, com olhar sempre perspicaz, mantém a relação palco-plateia através da autoridade que conferia a palavra como circulação de ideias. Leitores que acompanharam a longa carreira de Mariangela, como a organizadora da edição, reclamam da extensão de suas publicações, curtas pelo que propõem como largura de seus voos. Na sua escrita, distendida ao longo da sua prática jornalística, permanece fiel à sua maturação intelectual e à visão sensível e rigorosa de inovações cênicas ou estéticas ocasionais. A urgência de prazos, e os protocolos de edição do jornal não comprometeram a densidade com que penetrava nos detalhes da criação e na reflexão do conjunto. Sempre houve para ela, um tempo de reflexão que acompanhava a mediação do tempo de escrita. A medida não se desviava do equilíbrio do pensar com o  dizer. Fiel a si mesma e a seu papel de crítica, estudiosa e intelectual, Mariangela nunca esqueceu (ou a pressão editorial não a deixava esquecer) que escrevia para o leitor de jornal. Respeitava a sua inteligência, servindo-o com cardápio de ideias, límpidas, e nada didáticas ou professorais. Um exemplo na crítica a uma encenação de “Mãe Coragem”, que num único parágrafo faz citações de forma integradora. “ (O diretor) se alinha à interpretação que Jean-Paul Sartre dá ao teatro brechtiano, considerando-o um clássico que, a maneira de Racine, nos mostra as coisas “a frio”, separadas de nós, inacessíveis e terríveis, coisas que acreditávamos governar, mas que se desenvolvem fora do nosso controle.” 

"Os Sertões" José Celso Martinez Correa

E analisa com extrema finura os dilemas nas montagens de Tchekhov no Brasil. Sobre uma encenação de “Tio Vânia” na década de 2000, escreve: “ (...) espetáculos se desvencilharam, com maior ou menor êxito, do delicado verismo psicológico da concepção de Stanislavski. Quem sabe com um suspiro de alívio dos realizadores, uma vez que a contenção, a minúcia e os meios-tons da vida anímica são, para a nossa cultura teatral, mais difíceis de exprimir do que os contornos amplos das imagens simbólicas.” E no registro de texto de Edward Albee, aponta o percurso do equilíbrio delicado no tratamento de dramaturgia em evolução. “Quem já aprendeu a projetar a escala grandiosa do drama renascentista, experimentou o delicado discurso introspectivo do drama tchekhoviano e treinou os mecanismos ágeis e estilizados do “boulevard” saberá reconhecer as interseções do teatro moderno que servem de base a construção da cena contemporânea)”. Numa das raras vezes em que se mostra, aparentemente, “conclusiva”, é certeira: “É um trabalho difícil, porque tem a intenção de seduzir esteticamente sem omitir os horrores da doença, da deformidade e da pura crueldade. O elenco de “Os Sete Afluentes do Rio Ota” executa com maestria essa proeza de tornar complementares o belo e o horrível.”. 0u ambienta a linguagem triturada de Gerald Thomas na sua expressividade: “É do que não consegue compreender, daquilo que se manifesta de modo acidental e da tentativa de comunicar que se constitui a comunicação cênica, Trata-se, enfim, da matéria do sonho. (...) Ou matéria do inconsciente, um mundo pós-freudiano.” E fez, quase estudos paralelos entre a obra literária e o palco, na análise das encenações de José Celso Martinez Corrêa de “Os Sertões”, de Euclides da Cunha. E na transcrição cênica de Antunes Filho de “A Pedra do Reino”, de Ariano Suassuna, em que relaciona memorialismo a epopeia, ao “extrair o encantamento estético do que é “bruto, despojado e pobre”.”


Nos últimos anos no exercício da crítica, Barbara Heliodora foi mais julgada como personagem, temível, irascível, inflexível, do que como analista, rigorosa e fiel a preceitos de estudiosa de teatro. Desde quando começou a publicar críticas e artigos na imprensa se mostrou como alguém que se debruçava sobre o teatro como uma arte a ser perscrutada como valor da expressão humana, e para qual chamava a atenção dos seus leitores e alunos. Os clássicos gregos eram incontestáveis referências. Shakespeare,  aventura intelectual de vida. O teatro brasileiro, uma história ainda a ser contada, na qual assumia papel de mestra-formadora. Em tão longo tempo em que se converteu em  destaque, a princípio como baliza da crítica carioca, e em décadas mais recentes, como figura amoldada pela classe teatral, a um papel que não lhe assentava inteiramente. Havia nas críticas de Barbara, “uma objetividade quase cirúrgica”, como observou Claudia Braga, organizadora do livro. E por outro lado, uma passionalidade e um sentido “didático” (entendido como elemento educador e de formação de público). Seus detratores, que em grande parte se sentiam mais ameaçados por sua capacidade demonstrativa, do que por uma certa posição que a fazia bastante afirmativa. Acusavam-na de reduzir algumas de suas opiniões a adjetivos (certo, errado, bom, mau), esvaziando-as, sem possibilidade de discussão sobre o seu sentido. Ainda que superficiais, essas observações não comprometiam a convicção da análise, mesmo que a justeza da síntese pudesse ser tomada com imperativo absoluto, embrulhado em alguma ligeireza. O bisturi analítico se apresentava já no seu início na imprensa. Um dos exemplares mais significativos dessa acuidade analítica, pode ser constada no artigo (longo e rigorosamente estudado), publicado no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, em 1960: “Bernard Shaw no Teatro”. Outra era a imprensa, e nova era a crítica. Barbara significou a transição do antigo elenco de críticos, para o surgimento de nomes e posições diferentes em relação à prática da crítica teatral na imprensa. Uma das fundadoras do Circulo Independente de Críticos Teatrais (CICT), entidade que marcou um ponto de inflexão na crítica carioca nos anos 1960. Foi ainda responsável pela ascensão de Yan Michalski a seu posto no Jornal do Brasil. Algumas opiniões balizadoras, permearam os escritos de Barbara. Uma delas era a excelência técnica dos atores ingleses, que admirava pela competência no uso de seus meios expressivos. Sem compará-los aos brasileiros, apontava fragilidades nos nacionais, como provocação didática, mesmo sem esconder o seu incômodo: “não se compreende o que dizem.”. Tolerava alguns espetáculos despretensiosos (foi solitária na “defesa” do teatro besteirol”), exatamente pela falta de maiores ambições, mas não desculpava aqueles que, por excesso de pretensão, não soubessem o que diziam e como fazê-lo. Ao abrigo do conceito “teatro contemporâneo”, desconfiava de experimentos e vanguardas improvisadas, as quais, considerava, que não alcançavam as tentativas de questioná-los ou ultrapassá-los.  

Foram raríssimas as unanimidades em tão extensa carreira, a maior delas, Fernanda Montenegro. Fiel admiradora e reverente analista da dimensão do talento da atriz, acompanhou-a com visão “objetiva”, mas com piscadelas de indisfarçável prazer.   

“Fernanda Montenegro é inesgotável de encanto e emoção, e seu trabalho preserva sempre a qualidade de improvisação que tão bem esconde a sólida base técnica que lhe permite dominar o palco e o público. Embora não tenha sido escrita para ela, Fernanda Montenegro bem merece a canção Elle quelque chose, ele quelque chose la; temos a certeza de que Artur Azevedo estaria satisfeito.(...) Ratto (Gianni Ratto, diretor do espetáculo) encontrou a fórmula a que todos podiam se adaptar, e todos trabalharam , desde o diretor até o figurante que não pisou no palco mais de trinta segundos, com o mesmo amor que Artur Azevedo teve pelo teatro.”
(“O Mambembe” – 21/11/1959 – Jornal do Brasil)


“Fernanda Montenegro sustenta com uma categoria insuperável a extraordinariamente difícil linha do papel de Vivie; papel duro, difícil, por vezes desagradável, que não permita à atriz nem por um momento dar largas à manifestação integral  de emoção que já tem demonstrado em tantas ocasiões que assim requeriam. Rigidamente disciplinada, perfeitamente integrada no desejo do diretor, Fernanda Montenegro seguiu à risca o plano de Ratto, mas conseguiu, apesar de todos os obstáculos, uma Vivie que existe, realmente acima da mera realização de uma linha. Voz, postura, gestos, inflexões, tempo, tudo está medido, justo, certo. (...) Brilhante, vibrante, profissional na mais alta acepção da palavra é o que podemos dizer do trabalho de Fernanda Montenegro. De uma coisa não há dúvida: o que vemos atualmente no Teatro Copacabana é Shaw.”
(“A Profissão da Sra. Warren” – 7/5/1960 - Jornal do Brasil em 7/5/1960)

“(...) é a simbiose de Fernanda Montenegro com o universo de Adélia Prado que permite que o texto se torne uma experiência teatral autêntica, mesmo que o personagem de Fernanda, apenas “uma mulher”, não fique identificado, porém seja magistralmente individualizado pela capacidade da atriz de tornar absolutamente seus os pensamentos e emoções que Adélia expressa em sua obra.”
(“Dona Doida” - 25/7/1994 – O Globo)



Senhora Crítica

“Barbara Heliodora como crítica é, essencialmente, uma espectadora apaixonada e intensa do teatro. Ao lado da sólida formação, do professoral, conhecimento da história e da dedicação à obra de Shakespeare, foi da plateia que analisou milhares de espetáculos que a fizeram testemunha e participante da cena brasileira por 55 anos. A frequência e o dever profissional que para ela mantinham o hábito e despertavam o prazer, não deixavam de existir, até mesmo quando, num exercício histriônico de mal humor, brandia sua arma verbal contra a qualidade da maioria do que assistia. Dirigia aos criadores a sua carga teórica  com escrita clara e, muitas vezes, contundente. Informava ao leitor, com adjetivação indicativa, o valor do que acreditava ser “bom teatro”. Nas suas avaliações procurava capturar a natureza efêmera do ato teatral através do que se mostra mais permanente: texto e ator. Devotava ao primado da palavra e a grandeza dos clássicos o seu olhar mais arguto, estendido ao papel de tradutora, exercido com o mesmo rigor e respeito como lia os originais. Admitia, com reservas, a transposição do verso em prosa, e defendia a construção dramática como elemento de relevância absoluta. Odiava monólogos e ao contrário do que se imagina, fazia apostas que resultariam em êxitos. Solitária entre os críticos dos anos 80, anteviu no teatro do besteirol um movimento que arejou a comédia brasileira. Era generosa com os atores a quem admirava com sincero respeito, ainda que severa quando tinha restrições a seus trabalhos. Fernanda Montenegro, a amiga de décadas, se igualava em convivência com Ítalo Rossi e por extensão a Sergio Brito e a Jacqueline Laurence. Esse elenco de amigos se formou a partir da mais entusiástica crítica escrita por Barbara, logo depois e no calor da estreia de “O Mambembe” no Teatro Municipal, em 1959. Ficava extremamente sensibilizada com as agressões que recebia de vaidades contrariadas, mas não se abstinha de discutir os espetáculos no plano das ideias, caso o interlocutor se dispusesse a confrontá-las. O seu humor, de sotaque inglês e verve mineiro-carioca, não aparecia em suas críticas, ácidas, fundamentadas, personalistas, independentes, que se mantiveram por tanto tempo como referência, sempre compartilhadas com o público de seu lugar e percepção privilegiados na plateia.”    

Publicado, em 11/4/2015, em O Globo por Macksen Luiz, que sucedeu Barbara Heliodora na crítica teatral do jornal carioca.