Publicado no caderno “Ideias” do “Jornal do Brasil” em 10/7/1999 no lançamento do livro “A Porta Aberta”, de Peter Brook. O encenador inglês morreu em 2/7/2022.
Um Gênio Sem Nenhuma Certeza
Peter Brook está à procura do espaço vazio, a área dentro da qual pode ocorrer o novo. Despojado de intenções e sentidos apriorísticos, o vazio é de onde pode emergir a experiência nova e original, e a cada criação faz-se necessário estabelecer esse espaço puro, virgem para que sejam alcançados significados renovados. A prática teatral desse encenador inglês, exilado voluntário na França, e para quem a cena só encontra sentido na permanente redefinição do espaço criador, persegue a convergência de diversas energias inventivas para fazer desaparecer categorias pré-existentes para reencontrá-las modificadas. Em A porta aberta, livro publicado pela Civilização Brasileira, reunindo três ensaios sobre o processo de encenação, evidenciam-se as ligações do teatro de Peter Brook com a vida na forma como tenta materializar no palco elementos que retirem dela o que se confunde com o essencial, sem nunca querer imitá-la. A concentração da vida que o teatro proporciona empresta intensidade à capacidade usufruir do simulacro como uma suspensão da realidade, devolvendo pela arte a grandeza e a miséria de existir. Aos 74 anos, Peter Brook mantém a atitude de se lançar a cada encenação como se estivesse diante de uma zona inexplorada, do vazio a ser preenchido com a matéria imaterial da invenção, ainda que gravada a partir da matriz vital da realidade. No ensaio As artimanhas do tédio, Peter Brook ratifica o estado de dúvida, “a suspensão de certezas”, apostando no processo mais do que em resultados. A própria trajetória de Brook – múltipla, cheia de desvios e tocando a integralidade da arte, tal como um artista renascentista – denuncia inquietação e diversidade cultural que compõem o espectro não conclusivo de suas teorias. Cada espetáculo é único e propõe problemas inerentes à complexidade desta unidade. Com pouco mais de 20 anos, Peter Brook já estava sancionado como diretor do Royal Shakespeare Company, mas em 1970 abandonou a segurança de um currículo que inclui montagens históricas como a de Titus Andronicus e A Tempestade para se aventurar na criação do Centro Internacional de Criação Teatrais, em Paris.
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O Mahabharata (1989) |
A fábrica teatral de Peter Brook – o Teatro Bouffles du Nord – está instalado num prédio em estado precário no qual as paredes mostram a passagem do tempo. De lá saem espetáculos tão aparentemente contrários em sua essência quanto Os Iks – transposição cênica do estudo antropológico de Collin Turnbull sobre uma sociedade tribal africana em extinção pela fome – e O jardim das cerejeiras -, valorizando o sentido oculto da palavra em Tchecov para mostrar que os sentimentos não são inocentes. Neste Centro, o diretor mantém elenco com atores de várias etnias, que não se uniformizam, nem pela língua (ainda que o francês seja o idioma de expressão), muito menos pela padronização física (um antropólogo branco pode ser interpretado por um senegalês, e um aborígene por um escocês).
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O Grande Inquisidor (2008) |
A Tempestade é das peças shakespearianas a que mais atrai Brook ao ponto de em 35 anos dirigir três montagens, uma delas com John Gielgud com o Próspero. Na última, em 1990, com tradução francesa do colaborador constante, o escritor e roteirista Jean-Claude Carrière, Peter Brook descreve no ensaio Não há segredos a evolução do trabalho a partir das questões propostas pela cenografia, que explica muito bem as implicações de todo o arcabouço da cena. A certeza de que qualquer adorno em um texto de tamanha qualidade seria ilustrativo e vulgar, o cenário precisaria encontrar “um campo livre para o jogo da imaginação e um lugar em que o teatro não pretendesse ser nada mais que teatro”. Na metáfora cenográfica, Peter Brook estende-se pelos outros aspectos do espetáculo, ao conseguir imprimir significado a uma área com a extensão de um prosaico tapete. Numa linguagem que, em alguns momentos se confunde com preceitos esotéricos, Brook menciona “campos de energia” a serem criados no palco, a função do diretor como aquele que desenvolve sofisticado método de escuta e de que a mutação constante do teatro nada mais é do que um processo de crescimento. Ao desenvolver a imaginação no teatro, Peter Brook circunscreve aspectos mágicos a teorias de pesquisa e explora as infinitas possibilidades do vazio, até que naquilo que mais o assombra: o tédio. A sensação de desinteresse que muitas vezes se instala nas plateias é consequência da desvinculação ao mundo a que estão ligadas. A edificação da beleza se configura como a maior das possibilidades de restaurar a vitalidade e a seiva teatrais, enquanto o ator é o veículo através do qual o edifício cênico se constrói e a quem cabe a responsabilidade de criar vínculos de imaginação. O pulo do gato da criação é difícil de captar. O bote parece sempre estar no ar e ao tentar congelar o salto perde-se a trajetória do voo. Peter Brook no ensaio O peixe dourado utiliza a imagem para tentar descobrir como aprisionar esse animal raro. Ninguém sabe como, mas deixa a certeza de que para se aproximar da captura é preciso, como explora continuamente Peter Brook, ter aguda percepção da textura da realidade, “encontrar o tecido da vida” e costurar as formas no vazio primal da criação”.