Pelo 28º ano, o Festival de Curitiba mantém
a sua estrutura, senão intocada, pelo menos parcialmente ajustada às transformações
da cena brasileira ao longo deste período. Ainda como vitrine e com alguma
inflexão nesta formulação, a atual curadoria – do diretor Márcio Abreu e do
ator Guilherme Weber - da mostra paranaense aponta para algum desvio de rumo,
pelo terceiro ano seguido. Com sintonia na produção do eixo Rio-São Paulo, e apontamentos
para Belo Horizonte, distribui-se por espetáculos mais identificados com o mainstream (se é possível falar de tal
conceito na atual conjuntura teatral), e outros mais próximos a uma cena de rompimentos.
As duas linhas ainda estão em acomodação, mas caminham para as trinta edições com
o traço majoritário do desenho original. Apenas levemente ruidoso.
“As Comadres¨ - Essa comédia musicada
canadense se mostrou deslocada, sob
qualquer conceito curatorial, na programação do festival, e não só. O
deslocamento é também do tempo dramatúrgico, da fragilidade da sua estrutura narrativa e da precariedade
da imagem feminina que projeta. O fato de ter a supervisão geral de Ariane
Mnouchkine, um dos nomes mais importantes na cena internacional do século
passado, não poderia fazer supor que assinasse, mesmo que reproduzindo a encenação
original, montagem inexpressiva. Nada indicaria que alguém pudesse exumar um
texto banal de década de 1960, de um autor obscuro e descartável. A única justificativa
de encenar material tão pouco estimulante, está no eventual comercialismo entrevisto
por produtor à antiga. Mas o pior
está na perspectiva de ir além da sua insignificância. As mulheres que se veem
no palco vivem o feminino através de chavões sociais conservadores. Donas de
casa sem ambições para além de redecorar o lar, competitivas e desonestas entre
elas, preconceituosas com aquelas que consideram “decaídas”, e que têm o aborto
como estigma. preconceituosas com as que
se perdem, o aborto como estigma. O melodrama, que ameaça de início, se adensa até
o inacreditável final, intercalado por letras que o reforçam e música que o
ratifica. Nada poderá se mais anacrônico do que essa exibição de um teatro que
aponta para sinais contrários à atualidade, e para códigos cênicos passadistas.
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Uma fera ternamente furiosa |
“Recital da Onça” - O desafio de Regina Casé, neste monólogo ao ocupar o palco do Teatro Guaíra, era de se fazer presente e comunicativa para os dois mil espectadores que ocupavam as poltronas da sala. Esse mérito, a atriz conquistou, mas ao custo de dosar, um tanto desmedidamente, o one woman show com leituras de trechos literários. A maior parte das pouco mais de duas horas em que está em cena, explora suas características de humor, para divertir e fazer rir, com pílulas de sabedoria. E assim, integra em descompasso, vivências referidas, citação a filme em que atuou, à “trama” da ida a Harvard para “lecture” de autores brasileiros. A ponte improvisada está estabelecida entre a motivação das leituras e a chegada até lá: o medo da imigração americana, a sedução da plateia para fazer parte das escolhas da conferência. Em Curitiba foram lidos fragmentos de obras de Mario de Andrade, Dalton Trevisan, Paulo Leminski, Guimaraes Rosa e Clarice Lispector. A personalidade performática de Regina é a chave para abrir as páginas dos livros, cronometradas em 20 minutos de leitura cada um. Nesse retrato personalista, a atriz e apresentadora cultua sua imagem, que se sobrepõe aos tópicos literários. Espera-se encontrar a mesma e conhecida Regina da tv, que, entre pausas, enuncia palavras autorais. Os dois planos, self-show e sarau literário, estão interligados pela conquista, pelo humor, da audiência. Na escalada da “ganhar o espectador”, vale até concurso de samba no pé, no qual recatados curitibanos mostraram suas habilidades. Tanta movimentação e apelo, torna secundárias as características dos textos lidos, esvaziados de força expressiva. A exceção honrosa fica por conta de “Meu Tio Iuaretê”, de Guimarães Rosa, em que surge uma intérprete vigorosa, corporal e vocalmente, e liricamente furiosa.
“P.I Panorâmica Insana” - Escritura cênica, como a definiu
Bia Lessa, que assina a direção geral, a dramaturgia, ao lado de três outros
autores, talvez seja o que melhor sintetize essa coletânea de textos e esquetes,
que pretende refletir a perplexidade do momento, a apreensão do agora, o desgaste
do diário. O gigantesco palco do Teatro Guaíra, forrado por milhares de peças
de roupas, ambienta o veste e despe dos quatro atores - Claudia Abreu, Leandra
Leal, Rodolfo Pandolfo e Luiz Henrique Nogueira - que se lançam a maratona de
troca de peles, personagens e tipos, numa corrida pela identificação por cpfs,
nomes, condição social, existência, atitudes, em cenário devastado pelo caos. Morte,
miséria, religiosidade, politica, comportamentos, cotidiano, tantas formas de
convívio com as fraturas de mundo, filtradas pela convivência com negações do
humano. São cenas ativadas pelo ato de movimentar, como num balé simbólico de
troca de vestimentas (papéis, funções, máscaras), frente as toadas das provocações.
No enquadramento proposto, há muito mais a intenção de impacto, do que de corte
crítico. A inconstância do material, variante do escatológico à convenção do
esquete cômico, sob a embalagem de instalação plástica, deixa entrever datação estilística.
A cena final, que empacota o espaço, não esconde suas origens e inspiração. Mas
é a cena que a antecede - o esquete de humor, com os atores no centro do
palco -, que Rodolfo Pandolfo como o matuto, que conquista o público com verve
piadista.
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Coro marcando presença |
“ Abujamra Presente” - A companhia Fodidos e Privilegiados
(1901-2000), criada à imagem e semelhança de seu fundador e diretor geral, Antônio
Abujamra (1932-2015), reuniu o elenco original para homenagear o seu mentor.
Quase 20 anos depois, e dirigido por João Fonseca, a cria mais
identificada com seu mestre, “Abujamra Presente” é a súmula anárquica, provocativa,
politizante das montagens e do irreverente pensamento, das boutades e personalidade do encenador. Os sinais ampliados da
linguagem cênica dos seus espetáculos - os duplos, a dubiedade dos gêneros - são
retomados com comentários, bem explícitos, sobre o momento político, num
carrossel que gira entre a memória e o presente reverberado. A versão homenagem-agito,
sacode essa salada mista evocativa, com frases de Abu, quadros de ensaios e de
espetáculos, cortinas cômicas, e outras provocações (como o título do grupo) sem
amarras. Foi a melhor forma do diretor-pupilo
e do elenco devotado invocarem uma experiência coletiva, marcada por
temperamento único.