quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Temporada 2017

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (1/2/2017)

Crítica/ “Love, love, love”
Os afetos vividos no seio familiar

A palavra repetida no título da peça do inglês Mike Bartlett assume na tríplice reiteração o sentido inverso da sua etimologia. O amor de que fala surge dos conflitos e das rejeições familiares. Das promessas de transformações políticas e sociais quebradas por mentiras cínicas. Dos projetos individuais desmentidos por atitudes egoístas. Da passagem do tempo vivida como imobilidade irônica. Jovens se encontram na noite de 1967 quando os Beatles  cantam “All you need is love” na primeira transmissão ao vivo de TV via satélite, e se lançam em viagens escapistas em busca de si mesmos. Vinte anos depois, como casal emergente e disfuncional, se concentra nas carreiras bem sucedidas, desprezando os filhos. Na década de 2010, com a dupla já separada, se completa o esfacelamento desse microcosmo doméstico. O mundo que corre paralelo a essa célula adoecida é feito dos mesmos males dos discursos de primeiros-ministros e dos enganadores pactos de bem-estar social. No cenário de uma Inglaterra do pós-colonialismo ao liberalismo globalizado, transcorre esse drama em três atos e movimento único de realismo fotográfico. Bartlett concentra, na fricção entre os membros dessa família e o ambiente em que se desfaz, a narrativa  psicológica, contrastada por historicidade comparada. A evolução lenta da ação estabelece, com esse contraponto político-social, diálogo pouco fluente e um tanto superficial, pelo menos para plateias de fora dos limites da ilha britânica. Eric Lenate imprime relativa “latinidade” ao drama realista psicológico à inglesa com variações na temperatura das contendas. Não que tenha abandonado o caráter geograficamente “british” do figurino de Fabio Namatame e nas mutações do sofá que ocupa o cento do palco no desenho cenográfico de André Cortez. Mas há um calor, em grau rodriguiano, que intensifica as atuações do elenco e acelera a trama discursiva. Até Caetano Veloso é incluído na trilha de L.P. Daniel. Quando distendido do seu eixo central, o texto original na versão de Eric Menate, traduzido por Maria Angela Fontes Frederico, ganha fôlego a mais pela integração do quinteto de atores à alternância das idades e de comportamentos dos personagens. Mateus Monteiro expõe com postura corporal e contenção a timidez e insegurança do conservador Henry. Ary França recorre, de modo um tanto desajeitado, ao seu registro de comediante para dar veracidade ao pai. Rafael Primot adota um ar entre o deboche e a inconsequência para se vestir do jovem dos anos 1960. Nem mesmo a dispensável peruca prejudica o ator. Como o filho adolescente e na fase adulta, o ator  demonstra seus bons recursos para dar a mesma identidade à sua perturbação ao longo do tempo. Debora Falabella percorre os três arcos interpretativos (da garota libertária às adolescente e mulher sufocadas pela família) em composições bem estruturadas e com emoção dosada. Yara de Novaes propõe, em contornos definidos por sensibilidade e racionalidade interpretativas, uma impecável mãe rejeitadora.