Com temporadas cada vez mais curtas (três a
quatro sessões semanais durante três semanas), a permanência em cartaz dos
espetáculos reduz a possibilidade de fidelizar plateias. Montagens em cena nos
teatros do Sesc seguem esta configuração da oferta.
“Peça
de Casamento”
Edward Albee, autor de “Peça de casamento”,
que na direção de Guilherme Weber ocupa o Sesc Ginástico, é da geração de
dramaturgos americanos, que se seguiu aos “clássicos” Tennesse Williams e
Arthur Miller. Na mesma linha do realismo psicológico dos seus antecessores,
que consolidaram o gênero e estabeleceram a técnica do playwriting, Albee se
desprende do quadro social que os antecessores esboçaram diante dos conflitos
familiares, para se fixar nas relações, em especial de casais, em estado
crítico. Este texto, escrito nos anos 1980, não é tão contundente na exploração
da crise conjugal quanto em “Quem tem medo de Virginia Wolf”, lançado duas
décadas antes. Mas se reconhece a habilidade na construção dramática, apoiada
em golpes de teatro (a primeira fala do marido) e na exposição irônica de
intimidades (o diário da mulher sobre da vida sexual da dupla). Não há para onde fugir, e quem dá a partida para que, pelo
menos aparentemente, se chegue a uma solução é o marido. Vindo
do trabalho, como em qualquer outro dia, anuncia que está abandonando a mulher.
Essa fria e inesperada entrada em cena deflagra discussão sobre o casamento e seus
escombros e lança na arena do confronto, os despojos do que já foi afeição e sensualidade. Há nos
diálogos, mais do que na ação, contundência verbal, às vezes ferina,
outras irônicas, que ressalta as entrelinhas, por entre aquilo que é explícito
e a subjetivismo do não dito. O drama se
localiza neste espaço, no subterrâneo dos sentimentos e na superfície das emoções.
Guilherme Weber desenha a encenação numa tentativa de confrontar o realismo de
raiz, abandonando cômodas rubricas de identificação em favor da frontalidade dos
rompimentos. A ambientação cenográfica de Daniela Thomas e Camila Schmidt confirma o desenho da direção. Portas
espelhadas que refletem a presença dos
atores, e parcialmente da plateia, duplica as imagens e elimina quaisquer
outros elementos. Frente a frente, espelhando o conflito, desnuda-se o texto, sem
outros apoios visuais e maiores movimentações. Mas como esta é uma “peça de
atores” são eles que desempenham o jogo atritado das sucessivas intervenções pendulares dos sentimentos e reações.
Como polos equidistantes, Eliane Giardini e Antônio Gonzalez estabelecem
contracena que dialoga na inversão. A atriz empresta ao naturalismo da sua base
interpretativa, sarcasmo domesticado. O ator se faz distante para construir a
nudez, que se revela unicamente física.
“Interior”
São simbólicos os personagens de Maeterlinck,
como simbólicos são os seus pensamentos. O autor belga do final do século 19,
demonstra em “Interior”, a impotência humana diante de seu destino. O maior e mais
imperioso deles, a morte. Bonecos manipulados por fios invisíveis, mascarados
por ações para insuflar-lhes vida, igualados nas formas de existir,
compartilhando o imponderável, na inconsciência e na pretensa racionalidade,
são todos espectadores do que não lhes cabe dominar. A jornada do velho da
aldeia, ao lado do forasteiro, que descobriu o corpo de uma jovem, afogada no
lago, tem como fim, dizer à família da menina o que lhe aconteceu. Na hesitação
de como fazê-lo, o aldeão ronda a casa da família, entrevista pelas janelas em
ações banais e na ignorância do que não supõem vir a descobrir em seguida. Às
voltas de um ato do qual se desconhece as motivações, discorre sobre a tragédia
(“a desgraça se perde nos detalhes”). Relembra o encontro, mais cedo com a
jovem, duvidando do que parecia impossível (“ela sorriu como sorriem os querem
se calar ou têm medo de não serem compreendidos.”). Olha para ao quadro familiar com descrença
(“Elas têm um ar de bonecas imóveis e tantos feitos lhes passam na alma...elas
não sabem o que são.”). E ao final, quando os habitantes da aldeia chegam e o
velho já cumpriu o papel de anunciador a tragédia à família, o estrangeiro
constata: “a criança não acordou”. A encenação de Fabiana de Mello e Souza é
sensível à construção fabular e à poética alusiva do original, em tradução
límpida de Fátima Saad. Os elementos de pesquisa e imagética das máscaras, a
que se dedica, há décadas, a diretora, estão amadurecidos e bem incorporados na
Arena do Sesc Copacabana. A ambientação de Mina Quental centraliza em um
cubo-casa, movido pelos atores, e que obedece a circularidade da área, a sincronia
das cenas. Galhos circundam a plateia e personagens e máscaras surgem com
precisos efeitos de iluminação, assinada por Ana Luzia de Simoni e João Gioia. Sutis
acordes de musicalidade seriada (direção musical de Karina Neves e Jonas
Hocherman) preenchem o envolvente espaço. Para além deste quadro cenográfico-musical,
“Interior” alcança a medula da narrativa na forma como encontra a representação
texto, basicamente, descritivo. A dubiedade dos sentimentos que se constroem
com aproximação até a verdade, embaçada pela névoa do cotidiano, encontra atmosfera
cênica de tessitura refinada.
“Jogo de Damas”
“Nada a fazer” é a primeira fala de uma peça
de Beckett, como poderia ser de qualquer outra deste autor. O que ressalta
nesta devastadora percepção, reflete o que sua dramaturgia tem de niilismo e
descrença absoluta na aventura humana. Ainda que rompa com a estrutura
dramática com seus diálogos e personagens destituídos de “história”, e de
vestígios de “narrativa”, Beckett se fundamenta numa dramática que se reconhece
na tradição, desfocada em seus princípios. ”Jogo de Damas” em cena no Mezanino
do Sesc Copacabana não será uma adaptação de “Fim de Jogo”, já que a ficha
técnica informa ser um texto de Stephane Brodt, “a partir da obra de Samuel
Beckett”. Texto autônomo, com fortes referências ao original, certamente que
não é. Poderia se enquadrar como um “corte seco” do cinema, em que há uma
passagem de um plano ao outro? O mais provável é que houve uma troca nas regras
do jogo, não apenas na mudança do título, mas na reversão de sentidos. Sinais
foram trocados para que que a encenação adquirisse outra conformação. “Jogo de
Damas” perde a possibilidade de versão, minimamente inventiva e renovadora,
para configurar-se apenas como drama. A tensão que a montagem do Amok Teatro procura
com o apagamento dos silêncios, inação, mensuração das palavras e dos gestos mínimos,
se traduz em ruídos e atuação, e na ampliação das vozes e gestualidade. A intervenção
da música do compositor estoniano Arvo Part reforça a emoção como a partitura
dominante. O cenário, de vaga inspiração em imagens de Magritte, se desenha
como poética estetizante. Stephane Brodt sobrecarrega em composição corporal e
na voz empostada, em mão inversa aos sentimentos que pretende projetar. Gustavo
Damasceno adota figura travestida, que transfere para a máscara facial um
histrionismo que as palavras que diz não contêm. Neste jogo de cartas trocadas,
as damas mudam de roupa e se vestem de velhinhas rabugentas de um drama inexistente.