Crítica/ “Nuon
Há uma confluência entre o épico e o poético em
“Nuon”, montagem em que o grupo curitibano Ave Lola trata do extermínio de dois
milhões de cambojanos pelo regime do Khmer Vermelho nos seus quatro anos no
poder, entre 1975 e 1979. O príncipe deposto Sihanouk faz sua mea-culpa pelo
erro no exercício da autoridade diante da dizimação de um país pela guerra que
separa irmãs, suprime a liberdade e deixa rastro de desalojados da identidade, refugiados
do horror da violência do poder. A ativista, cujo nome intitula essa saga sobre
a insanidade da força, revive em três épocas distintas a violência contra a
dignidade humana no ponto mais essencial da sua expressão, a impossibilidade da
manifestação plena da vida. A autora e diretora Ana Rosa Tezza ambienta a
historicidade política e a secularidade cultural na noite dos mortos cambojana,
quando são celebrados os ancestrais. Interpretada em seus significados sócio-políticos
e revestida de sua simbologia estético-milenar, a cena contrasta abjeção com
harmonia, sem que essa dicotomia enfraqueça o impacto da razão e encubra o peso
do encantatório. Ana Rosa quebra a fronteira da reflexão delimitada, integrando-a
ao território da linguagem teatral expandida. Num artesanato delicadamente
sensorial, se ritualiza o ódio com a energia da sobrevivência, desarmando a
chave do discurso direto, abrindo o portal da sensibilização lúcida. A
narrativa onírica, que interpõe planos e tempos, pode parecer um tanto elíptica
na forma, mas revela sensibilidade no sentido. A cenografia de Fernando Marés
se destaca pelo pórtico com elementos orientais que dão imponência ao espaço de
praticáveis, que descentralizam a ação. Beto Bruel e Rodrigo Ziolkowski
desenham suave atmosfera de luz. O figurino de Eduardo Giacomini tem a qualidade
de criação muito além da pesquisa. As máscaras de Maria Adélia encorpam o
visual com alto nível de execução. A composição musical de Mateus Ferrari, que
ao lado de Breno Monte Serrat toca tambores e sopros de madeira, atinge
sonoridade de viés asiático e oportuno contraponto dramático. Em clima
ritualizado, os atores desempenham, tal como celebrantes, coreografia de
palavras, usando o corpo como movimentos de vida e morte. O elenco – Evandro
Santiago, Helena Tezza, Janine de Campos, Marcelo Rodrigues e Regina Bastos – confirma o rigor do
coletivo paranaense de inspiração no Théâtre du Soleil e ressalta a integridade
criativa de um trabalho de qualidade.