sexta-feira, 2 de agosto de 2024

Felipe Hirsch e o Tempo Cênico

 

  

       (“Agora Era Tudo Tão Velho” – 2024)

“Agora Era Tudo Tão Velho – Fantasmagoria 4” é o título da mais recente encenação de Felipe Hirsch, vista há pouco em São Paulo. Tempos que se confundem, ilusão dos efeitos mágicos são o material que o diretor manipula fragmentos literários e vozes dissonantes que se constroem no palco como sombras do agora e luzes do passado. Síntese-balanço de uma dramaturgia cênica única, de grafia própria e linguagem com assinatura, o espetáculo converge para refinada maturação dos meios expressivos do encenador. Textos de autores tão semelhantes por suas dissonâncias, reúnem-se numa mesma listagem narrativa: 

- Paulo Leminski (“No mundo burguês, a obra de arte só pode ser duas coisas: ornamento e mercadoria. A burguesia saudou a liberdade da arte, comprando-a.”/“E obras de arte são rebeldias. Sua manifestação na linguagem. E obras de arte chamamos poesia, inestimável “inutensílio.“)
   
- John Cage (“Existe algo que seja o silêncio? Será que tem sempre alguma coisa para ouvir, jamais sossego e paz? Faz sentido perguntar porquê?”)

- Caetano W. Galindo e Guilherme Gontijo Flores (“Se nada é de verdade, eu preciso estar aqui, agora, real, na frente de vocês. Mas eu preciso ser, eu preciso dar sentido, ter sentido. Eu preciso ser uma peça.”)

- Caetano W. Galindo (“O princípio de que é a ideia de que se uma arma carregada aparece em cena, em um determinado momento, de uma peça, ela deve disparar até o final da peça. / ...porque não há um final da história. Não há uma conclusão./ ... Podem aplaudir agora. Convocado apenas pra fazer esse rumor ali, esse eco de que a peça existiu. Eco é algum nível de fantasmagoria, né? Em algum nível, a plateia, em boa parte do teatro, é uma fantasmagoria. Pro bem ou pro mal. Agora fiquei me perguntando muito sinceramente o que seria eco para a gente, para a nossa cultura.”)

-  “Bang Bang” (1971), de Andrea Tonacci (Filme que subverte técnicas, gêneros narrativos, satirizando cada um deles, pela superexposição e exagero.)

Ouve-se, repetidamente, ao entrar no teatro, sons fracionados, em um embaralhar de pistas (a voz de Elza Soares, frase de canção que diz; “eu quero desistir”). Embaralham-se ruídos e palavras numa sequência partida a que o espectador será envolvido em mais de duas horas. Confrontado  como ouvinte de palavras e situações em que arte, dúvidas, perplexidades e o sentido da existência são exploradas como desmonte de múltiplas narrativas cênicas. O teatro é quebrado na expressividade da sua linguagem, reforçado na  integridade comunicativa de sua rebeldia poética, Cenas se sucedem sem  “lógica” narrativa, conduzidas pela palavra selecionada de autores que descrevem sentimentos do mundo e da arte, atualizados pelas incertezas contemporâneas.  O que o espectador tem como  permanente neste mergulho no atual, é o passado e presente do teatro. Vários e discrepantes meios narrativos são experimentados e lançados à plateia, ora como propostas estéticas, ora como meios persuasivos de atração/provocação. São cenas em sequências embaralhadas, que se concluem em si mesmas, algumas vezes, ou vão se reencontrar em momentos díspares. Um exemplo: um ator solitário no palco, diz fazer 32 perguntas, que, verdadeiramente,  são mais de 150, repetidas numa mesma inflexão. Percebe-se o movimento de impaciência crescente do espectador, até que alguns poucos deixam, ruidosamente o teatro. O efeito de tantas perguntas (“Não parece besteira continuar a fazer perguntas quando há tanta coisa urgente de verdade por fazer?”) sem respostas conclusivas. Corte: cenário mambembe para interpretações explodidas.  O esquete que reproduz de filme-desbunde-caótico de década de 1970, se encaixa na frequência das oscilações e temperaturas do espetáculo, São alternâncias de ritmos cênicos e quebra de expectativa de encontrar alguma linearidade narrativa, que apoie a estrutura do espetáculo. A palavra fragmentada sustenta o fluxo teatral, insinuante, recortado, provocador, amargamente poético, conduzindo  a plateia a assistir uma arte tão antiga e permanente, como o teatro, ser confrontada com o presente, inquietante, duvidoso, oco, sem perspectivas. (“É preciso continuar, não consigo continuar, eu vou continuar.”)   

 Cenas  do diretor


Quase que por contraste, o diretor Felipe Hirsch repete a fórmula que o acompanha há anos, mais cristalizada a partir de “Puzzle” (2013), deixando entrever o domínio dos meios que asseguram assinatura indelével às suas encenações. Se de início já experimentava o que viria s ser o seu indiscutível universo cênico (“Por um Incêndio Romântico”, 1999), depuraria ao longo da carreira sua gramática na dezenas de espetáculos teatrais, ópera (“Orphèe”), e investidas no cinema. Inequívoco admirador da cultura anglo-saxã, em especial aquela que se manifesta através da ficção e da tela, além da música pop, seja como base dramática ou linguagem, Hirsch, como cronista (escreveu no jornal O Globo) estabelece com esse universo cultural de eleição, vínculos à memória e sentimentos geracionais. Sua criação converge para a vivências de seu tempo, relacionando dores contemporâneas à individualização de sentimentos, e assim ressoar o silêncio coletivo. Seu repertório demonstra o vigor de traços que penetram nos escaninhos da cena e nos desafios do pensamento. 


 (“Lazarus” – 2019)

“Lazarus” tem forma muito própria e peculiar de se perceber como musical. O puzzle músico-ficcional em que o inglês David Bowie acondiciona seu repertório de letras esquivas ao filme “0 Homem que Caiu na Terra”, do qual foi o protagonista, pode ser visto como detonador de memórias de “impermanência e morte”. Nada que se pareça, estritamente, a uma narrativa do gênero (ação e canções), muito menos a um show com citações cênicas. É tudo isso, e também mais alguma coisa: estranha, dissonante, mutante, andrógina, cheia de representações intrigantes, como os muitos rostos maquiados de Bowie. “Lazarus” confirma as características de Felipe Hirsch com assinatura legível. Os meios expressivos são sofisticados e tratados de modo serial, numa sequência de quadros que se compõem como painel de sensibilização. do-se ao jogo cênico. A procura é pela fruição de um certo universo, independente da coerência e da empatia pela recepção. O texto é secundário como história e coadjuvante como narrativa, integrando-se ao jogo cênico. A procura é pela fruição de um certo universo, independente da coerência e da empatia pela recepção. O que é acentuado, está em paralelo ao olhar em busca de significados. É provável, que o espectador que desconheça David Bowie, possa assistir a “Lazarus” como um espetáculo realizado num universo paralelo. Mas até ele, certamente, viverá a experiência de ser levado por construção cênica de bases sólidas, e instigado pelo prazer de um mergulho na “impermanência e morte” de um tempo. O nosso.


(“Fim” -  2019)

É na finitude que a contemporaneidade se torna ainda mais inescapável, e de que trata o diretor Felipe Hirsch em “Fim”. Fronteiras da arte, história, linguagens, tempos, se diluem nos processos de criação, vividos como enfrentamentos em batalhas que, a meio, já apontam para derrotas. O exercício da invenção parece esgotado pela ausência de perspectivas menos nebulosas, num momento em que experiências de buscar novos códigos esbarram na impermeabilidade da recepção. Como em “Puzzle”, que marcou viragem na carreira de Hirsch, a montagem se arma em quebra-cabeças de quatro quadros, escritos pelo argentino Rafael Spregelburd. Em “O Fim da História”, grupo teatral algo mambembe, ensaia um clássico qualquer, quando é exposto a incêndio destruidor, e condenado à repetição e comprometido na sua sobrevivência pelos espectros da atualidade. Mais do que posição niilista, que o título promete e a encenação não compartilha integralmente, “Fim”  é desabafo-manifesto de um corte sem suturas.


 (“Não sobre o amor” – 2008)

‘Felipe Hirsch é cirúrgico na construção ascética de “Não sobre o amor”, do poeta russo Viktor Shklovsy, em espetáculo destituído de firulas dramáticas e carregado de rigor estético. De formalismo detalhista, a montagem traduz o texto com o mesmo distanciamento  contido nas cartas entre o poeta e a amada, expressando o que aparenta ser nostálgico em emoção verdadeira das lembranças.  Ainda que o diretor tenha conduzido a cena de maneira tão racional, emerge real emoção que se impregna do vácuo em que o personagem flutua, sem eixo que o localize como exilado de si mesmo. 


 (“A memória da água” – 2001)

“Em A memória da água”, texto da inglesa Shelagh Stephenson, as personagens voltam sempre ao passado para encontrar por lá justificativas e, desse movimento, entre tempos, se valem  das lembranças, vagamente verdadeiras. Felipe Hirsch, coerente como  perspectiva de direção, se volta para a universo cênico que volatiza a memória. A tela transparente que, separa o palco-plateia, cria névoa no olhar e teia fina de atração e repulsão. O diretor ignora os resquícios melodramáticos e aponta para as entrelinhas do riso agridoce e o afogamento melancólico.


(“A vida é cheia de som e fúria” – 2000)

A  escolha da obra literária de Nick Horny para a transposição cênica de Felipe Hirsch parece obedecer às possibilidades que o romance oferece como trilha musical para o estado um tanto inercial do personagem diante da vida. A adaptação reproduz as “repetições” da narrativa da existência estática e de quem projeta a auto-piedade em longo e ensimesmado monólogo. A direção imprime movimento cinematográfico a roteiro de recorrências, com cortes nervosos e reiterações de cenas, com voltas na ação como se as imagens estivessem sendo editados em um filme.             

 “Por um Incêndio Romântico “ -1999

Terence McNally ao criar jogo entre os desígnios místicos que comandam as ações de um deus humanizado e o drama psicológico de mulheres em balanço existencial, estabelece choque cultural, responsável pelos aspectos de humor do texto. A montagem de Felipe Hirsch revela saudável  insatisfação com a linearidade, já que cria espaço quase abstrato, a ponto de deixar impressão de que se inspirou em imagens, concepções que remetem a referências bem evidentes: de Bob Wilson a Gerald Thomas.