sexta-feira, 1 de março de 2024


Plateia Privilegiada

Com o desaparecimento da crítica jornalística profissional de teatro, engolida pelas crises econômica, formal e de leitores da imprensa, a atividade sumiu das publicações remanescentes. Acuada pela interferência fatal das mídias sociais, a prática se experimenta no digital, sem ainda encontrar mediação entre a linguagem acadêmica e voluntarista, e  a equalização da comunicabilidade. A última geração de críticas, que por décadas, mantiveram colunas em jornais, lançam em livros, a longa, persistente, quase contínua, análise, reflexão e registro de temporadas que compõem a história da cena nacional por mais de 50 anos. Coletâneas que selecionam a produção e o pensamento de quem vivenciou  a atualidade da notícia e a prestação ao consumo do leitor.  E sustentou, muitas vezes, num equilíbrio delicado, a consciência da impermanência do ato teatral e o cultivo e respeito à sua própria integridade intelectual na relação com as plateias de cada tempo. De gerações diferentes, mas contemporâneas em grande parte de suas vidas profissionais, Mariangela Alves de Lima e Barbara Heliodora assinam a autoria de coletâneas que reúnem parte de seus extensos exercícios críticos. A paulista Mariangela, de 1972 a 2010, sempre em  O Estado de São Paulo; a carioca Barbara, desde 1957, no extinto Tribuna da Imprensa, e em veículos, como Jornal do Brasil, revista Visão, (todos também desaparecidos) e em O Globo, até um ano antes de sua morte, em 2015. Em “Na Plateia” (Edições Sesc), das 557 críticas publicadas no Estadão, a organizadora Marta Raquel Colabone selecionou 290, modulando painel que condensa refinado conhecimento de quem se pautou por sobriedade no estilo da linguagem e na acuidade da reflexão. “Barbara Heliodora – Escritos Sobre Teatro” (Perspectiva),  organizada por Claudia Braga, se divide pelo tempo e percurso da crítica pelas diversas atuações no campo do teatro: textos teóricos, vida teatral, teatro e estado,  e críticas (de 1957 a1994).   


Em conversa despretensiosa, diretor teatral comentava: “nunca se sabe se a Mariangela gostou do espetáculo.” É verdade, mas desde que se entenda a crítica de jornal apenas como indicador para assistir ao espetáculo. Se lida sob as próprias ferramentas de que o texto se utiliza e como espelho analítico que o conhecimento reflete, a obra de Mariangela é de translúcida inteligência, linguagem clara (seu texto é impecável) e erudição, vivificadas por escrita não-professoral. Cada avaliação parte da integralidade do pensamento acurado, que se individualiza pelas características dos gêneros, e passagem de tempo. Com fidelidade à primazia do “literário”, mais evidente no início das publicações, atenta às investidas contemporâneas, com olhar sempre perspicaz, mantém a relação palco-plateia através da autoridade que conferia a palavra como circulação de ideias. Leitores que acompanharam a longa carreira de Mariangela, como a organizadora da edição, reclamam da extensão de suas publicações, curtas pelo que propõem como largura de seus voos. Na sua escrita, distendida ao longo da sua prática jornalística, permanece fiel à sua maturação intelectual e à visão sensível e rigorosa de inovações cênicas ou estéticas ocasionais. A urgência de prazos, e os protocolos de edição do jornal não comprometeram a densidade com que penetrava nos detalhes da criação e na reflexão do conjunto. Sempre houve para ela, um tempo de reflexão que acompanhava a mediação do tempo de escrita. A medida não se desviava do equilíbrio do pensar com o  dizer. Fiel a si mesma e a seu papel de crítica, estudiosa e intelectual, Mariangela nunca esqueceu (ou a pressão editorial não a deixava esquecer) que escrevia para o leitor de jornal. Respeitava a sua inteligência, servindo-o com cardápio de ideias, límpidas, e nada didáticas ou professorais. Um exemplo na crítica a uma encenação de “Mãe Coragem”, que num único parágrafo faz citações de forma integradora. “ (O diretor) se alinha à interpretação que Jean-Paul Sartre dá ao teatro brechtiano, considerando-o um clássico que, a maneira de Racine, nos mostra as coisas “a frio”, separadas de nós, inacessíveis e terríveis, coisas que acreditávamos governar, mas que se desenvolvem fora do nosso controle.” 

"Os Sertões" José Celso Martinez Correa

E analisa com extrema finura os dilemas nas montagens de Tchekhov no Brasil. Sobre uma encenação de “Tio Vânia” na década de 2000, escreve: “ (...) espetáculos se desvencilharam, com maior ou menor êxito, do delicado verismo psicológico da concepção de Stanislavski. Quem sabe com um suspiro de alívio dos realizadores, uma vez que a contenção, a minúcia e os meios-tons da vida anímica são, para a nossa cultura teatral, mais difíceis de exprimir do que os contornos amplos das imagens simbólicas.” E no registro de texto de Edward Albee, aponta o percurso do equilíbrio delicado no tratamento de dramaturgia em evolução. “Quem já aprendeu a projetar a escala grandiosa do drama renascentista, experimentou o delicado discurso introspectivo do drama tchekhoviano e treinou os mecanismos ágeis e estilizados do “boulevard” saberá reconhecer as interseções do teatro moderno que servem de base a construção da cena contemporânea)”. Numa das raras vezes em que se mostra, aparentemente, “conclusiva”, é certeira: “É um trabalho difícil, porque tem a intenção de seduzir esteticamente sem omitir os horrores da doença, da deformidade e da pura crueldade. O elenco de “Os Sete Afluentes do Rio Ota” executa com maestria essa proeza de tornar complementares o belo e o horrível.”. 0u ambienta a linguagem triturada de Gerald Thomas na sua expressividade: “É do que não consegue compreender, daquilo que se manifesta de modo acidental e da tentativa de comunicar que se constitui a comunicação cênica, Trata-se, enfim, da matéria do sonho. (...) Ou matéria do inconsciente, um mundo pós-freudiano.” E fez, quase estudos paralelos entre a obra literária e o palco, na análise das encenações de José Celso Martinez Corrêa de “Os Sertões”, de Euclides da Cunha. E na transcrição cênica de Antunes Filho de “A Pedra do Reino”, de Ariano Suassuna, em que relaciona memorialismo a epopeia, ao “extrair o encantamento estético do que é “bruto, despojado e pobre”.”


Nos últimos anos no exercício da crítica, Barbara Heliodora foi mais julgada como personagem, temível, irascível, inflexível, do que como analista, rigorosa e fiel a preceitos de estudiosa de teatro. Desde quando começou a publicar críticas e artigos na imprensa se mostrou como alguém que se debruçava sobre o teatro como uma arte a ser perscrutada como valor da expressão humana, e para qual chamava a atenção dos seus leitores e alunos. Os clássicos gregos eram incontestáveis referências. Shakespeare,  aventura intelectual de vida. O teatro brasileiro, uma história ainda a ser contada, na qual assumia papel de mestra-formadora. Em tão longo tempo em que se converteu em  destaque, a princípio como baliza da crítica carioca, e em décadas mais recentes, como figura amoldada pela classe teatral, a um papel que não lhe assentava inteiramente. Havia nas críticas de Barbara, “uma objetividade quase cirúrgica”, como observou Claudia Braga, organizadora do livro. E por outro lado, uma passionalidade e um sentido “didático” (entendido como elemento educador e de formação de público). Seus detratores, que em grande parte se sentiam mais ameaçados por sua capacidade demonstrativa, do que por uma certa posição que a fazia bastante afirmativa. Acusavam-na de reduzir algumas de suas opiniões a adjetivos (certo, errado, bom, mau), esvaziando-as, sem possibilidade de discussão sobre o seu sentido. Ainda que superficiais, essas observações não comprometiam a convicção da análise, mesmo que a justeza da síntese pudesse ser tomada com imperativo absoluto, embrulhado em alguma ligeireza. O bisturi analítico se apresentava já no seu início na imprensa. Um dos exemplares mais significativos dessa acuidade analítica, pode ser constada no artigo (longo e rigorosamente estudado), publicado no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, em 1960: “Bernard Shaw no Teatro”. Outra era a imprensa, e nova era a crítica. Barbara significou a transição do antigo elenco de críticos, para o surgimento de nomes e posições diferentes em relação à prática da crítica teatral na imprensa. Uma das fundadoras do Circulo Independente de Críticos Teatrais (CICT), entidade que marcou um ponto de inflexão na crítica carioca nos anos 1960. Foi ainda responsável pela ascensão de Yan Michalski a seu posto no Jornal do Brasil. Algumas opiniões balizadoras, permearam os escritos de Barbara. Uma delas era a excelência técnica dos atores ingleses, que admirava pela competência no uso de seus meios expressivos. Sem compará-los aos brasileiros, apontava fragilidades nos nacionais, como provocação didática, mesmo sem esconder o seu incômodo: “não se compreende o que dizem.”. Tolerava alguns espetáculos despretensiosos (foi solitária na “defesa” do teatro besteirol”), exatamente pela falta de maiores ambições, mas não desculpava aqueles que, por excesso de pretensão, não soubessem o que diziam e como fazê-lo. Ao abrigo do conceito “teatro contemporâneo”, desconfiava de experimentos e vanguardas improvisadas, as quais, considerava, que não alcançavam as tentativas de questioná-los ou ultrapassá-los.  

Foram raríssimas as unanimidades em tão extensa carreira, a maior delas, Fernanda Montenegro. Fiel admiradora e reverente analista da dimensão do talento da atriz, acompanhou-a com visão “objetiva”, mas com piscadelas de indisfarçável prazer.   

“Fernanda Montenegro é inesgotável de encanto e emoção, e seu trabalho preserva sempre a qualidade de improvisação que tão bem esconde a sólida base técnica que lhe permite dominar o palco e o público. Embora não tenha sido escrita para ela, Fernanda Montenegro bem merece a canção Elle quelque chose, ele quelque chose la; temos a certeza de que Artur Azevedo estaria satisfeito.(...) Ratto (Gianni Ratto, diretor do espetáculo) encontrou a fórmula a que todos podiam se adaptar, e todos trabalharam , desde o diretor até o figurante que não pisou no palco mais de trinta segundos, com o mesmo amor que Artur Azevedo teve pelo teatro.”
(“O Mambembe” – 21/11/1959 – Jornal do Brasil)


“Fernanda Montenegro sustenta com uma categoria insuperável a extraordinariamente difícil linha do papel de Vivie; papel duro, difícil, por vezes desagradável, que não permita à atriz nem por um momento dar largas à manifestação integral  de emoção que já tem demonstrado em tantas ocasiões que assim requeriam. Rigidamente disciplinada, perfeitamente integrada no desejo do diretor, Fernanda Montenegro seguiu à risca o plano de Ratto, mas conseguiu, apesar de todos os obstáculos, uma Vivie que existe, realmente acima da mera realização de uma linha. Voz, postura, gestos, inflexões, tempo, tudo está medido, justo, certo. (...) Brilhante, vibrante, profissional na mais alta acepção da palavra é o que podemos dizer do trabalho de Fernanda Montenegro. De uma coisa não há dúvida: o que vemos atualmente no Teatro Copacabana é Shaw.”
(“A Profissão da Sra. Warren” – 7/5/1960 - Jornal do Brasil em 7/5/1960)

“(...) é a simbiose de Fernanda Montenegro com o universo de Adélia Prado que permite que o texto se torne uma experiência teatral autêntica, mesmo que o personagem de Fernanda, apenas “uma mulher”, não fique identificado, porém seja magistralmente individualizado pela capacidade da atriz de tornar absolutamente seus os pensamentos e emoções que Adélia expressa em sua obra.”
(“Dona Doida” - 25/7/1994 – O Globo)



Senhora Crítica

“Barbara Heliodora como crítica é, essencialmente, uma espectadora apaixonada e intensa do teatro. Ao lado da sólida formação, do professoral, conhecimento da história e da dedicação à obra de Shakespeare, foi da plateia que analisou milhares de espetáculos que a fizeram testemunha e participante da cena brasileira por 55 anos. A frequência e o dever profissional que para ela mantinham o hábito e despertavam o prazer, não deixavam de existir, até mesmo quando, num exercício histriônico de mal humor, brandia sua arma verbal contra a qualidade da maioria do que assistia. Dirigia aos criadores a sua carga teórica  com escrita clara e, muitas vezes, contundente. Informava ao leitor, com adjetivação indicativa, o valor do que acreditava ser “bom teatro”. Nas suas avaliações procurava capturar a natureza efêmera do ato teatral através do que se mostra mais permanente: texto e ator. Devotava ao primado da palavra e a grandeza dos clássicos o seu olhar mais arguto, estendido ao papel de tradutora, exercido com o mesmo rigor e respeito como lia os originais. Admitia, com reservas, a transposição do verso em prosa, e defendia a construção dramática como elemento de relevância absoluta. Odiava monólogos e ao contrário do que se imagina, fazia apostas que resultariam em êxitos. Solitária entre os críticos dos anos 80, anteviu no teatro do besteirol um movimento que arejou a comédia brasileira. Era generosa com os atores a quem admirava com sincero respeito, ainda que severa quando tinha restrições a seus trabalhos. Fernanda Montenegro, a amiga de décadas, se igualava em convivência com Ítalo Rossi e por extensão a Sergio Brito e a Jacqueline Laurence. Esse elenco de amigos se formou a partir da mais entusiástica crítica escrita por Barbara, logo depois e no calor da estreia de “O Mambembe” no Teatro Municipal, em 1959. Ficava extremamente sensibilizada com as agressões que recebia de vaidades contrariadas, mas não se abstinha de discutir os espetáculos no plano das ideias, caso o interlocutor se dispusesse a confrontá-las. O seu humor, de sotaque inglês e verve mineiro-carioca, não aparecia em suas críticas, ácidas, fundamentadas, personalistas, independentes, que se mantiveram por tanto tempo como referência, sempre compartilhadas com o público de seu lugar e percepção privilegiados na plateia.”    

Publicado, em 11/4/2015, em O Globo por Macksen Luiz, que sucedeu Barbara Heliodora na crítica teatral do jornal carioca.