terça-feira, 31 de outubro de 2023

Voz Solta dos Musicais

Nas temporadas teatrais pós-pandemia, nenhum desenho de tendência parece ter algum fôlego para se sustentar, ou até mesmo para se anunciar possível. Ainda que seja apenas exercício especulativo, sem qualquer comprovação numérica mais exata, os espetáculos musicais têm ocupado  a cena, numa sucessão e frequência que os distinguem como meios de produção e técnicas próprias. Parte deles consegue patrocínios razoáveis para estrear para períodos curtos no palco, com publicidade difusa do digital e o improvável boca-a-boca de suposto público cativo do gênero. De concreto, podem ser alinhados, de janeiro a outubro, três dezenas de musicais em estilos diversos: originários da Broadway e West End, de linguagem brasileira (temas e sonoridade nacionais), em desenho biográfico no formato de exaltação e homenagem, e no disfarce de show. Nesses dez meses, pelo menos quatro montagens podem ser classificadas como produtos de importação com selo de procedência.

Giulia Nadruz: “Funny Girl”

“ Funny Girl- A Garota Genial” é encenado com objeto retilíneo (sem desvios dos padrões), obedecendo as curvaturas de entretenimento (canções e evocação do music hall). Receituário pronto, é só temperar com algumas referências às imagens de outros musicais (coreografia, cenário e figurino adequados), e a aposta na sorte de um hit (canção que “salte” do espetáculo, e ganhe sucesso fora do enquadramento do palco). ‘Funny Girl” tem tudo isso. E pitada de melodrama romântico e, finalmente, o produto fica disponível para venda. Desde a década de 1960, quando estreou na Broadway, e  foi levado ao cinema, demostra alguma resistência ao tempo. A montagem brasileira o reanima com o fôlego de sessentão com razoável condicionamento.
“BeetleJuice”, adaptação do cinema, procura relembrar, e também ampliar no teatro, o humor de gags e entrecho ingênuo da versão da tela. Se no nosso sotaque, citações brasileiríssimas compõem a trilha sonora e o histrionismo do elenco, não é possível esquecer a nacionalidade do passaporte da encenação. As convenções e os cacoetes do modelo estão intocáveis nas canções escritas  em pauta de caderno  de encargos e em escala  de efeitos e técnicas saturadas. A maior contribuição nacional se concentra na decisão empresarial de montar “BeetleJuice”.
“O Jovem Frankenstein”, com mesma origem fílmica, não se desvia das normas dominantes dos teatros nova-iorquinos, mas com uma diferença no translado: a assinatura de Charles Moeller (direção) e Claudio Botelho (versão das letras). A dupla, desde os primeiras tentativas de transcrever nos palcos a cultivada admiração por musicais da Broadway (“Cole Porter – Ele Nunca Disse que me Amava”, “As Malvadas”) se empenha em ser fiel, em espírito, à alma do estilo. Ligados, por quase trinta anos, ao repertório “clássico” (de “A Noviça Rebelde” a “Como Vencer na Vida Sem Fazer Força”,  de “O Violinista no Telhado”  a “Gipsy”), circularam por áreas vizinhas (“Todos os musicais de Chico Buarque em 90 minutos”, “Sassaricando – E o Rio Inventou a Marchinha”, “Beatles Num Céu de Diamantes”). Em “Frankenstein...”, a eficácia na montagem de Charles/Botelho não se deixa arranhar por este musical rotineiro de frágil comicidade e esquecível trilha. Claudio e Charles foram também responsáveis por “Mamma Mia!¨, musical com libreto indolor para trilha anestesiante do Abba. Há pouco que fazer diante de tal material, mas o diretor e o versionista conseguiram o que talvez seja o maior êxito do gênero este ano. O público lotou o Teatro Multiplan, na Barra da Tijuca que, ao que parece, está se transformando na sede das “tradicionais “ comédias musicais no Rio.

Ana Carbatti: “Museu Nacional”

A cidade é também o endereço do Cia. Barca dos Corações Partidos, que em pouco mais de uma década, estabeleceu novas técnicas e sonoridades na linguagem do musical brasileiro. Este ano, apresentou “Museu Nacional (Todas as Vozes do Fogo)”, tema infenso ao calor dos brilhos e a temperatura alta dos efeitos. Na curta, mas marcante carreira do grupo, já estão desenhadas as características originais e inconfundíveis dos músicos-atores.  Com dinâmica cênica, em que a música é mais do que elemento complementar, a trilha ganha representação dançada de libretos ora biográficos (Jackson do Pandeiro, Ariano Suassuna, Luiz Gonzaga), ora construção simbiótica de música, dramaturgia e movimento com gramática inconfundível (“Auê”).

Bibi Ferreira: “Minha Querida Lady”

No histórico dos musicais no Brasil com selo de importação, “My Fair Lady” (“Minha Querida Lady”, na tradução nacional”)  abriu os portos, na década de 1960, para a entrada do modelo. Em transcrição direta, com diretores e equipes técnicas  com know-how da franquia, o que se assistia aqui era cópia integral do que se criou por lá. “Hello Dolly”, “Chorus Line”, ”Evita”, “Fantasma da Ópera”, “Les Misérables”, “Chicago”, “Rei Leão”, se sucederam nas décadas seguintes, formando geração de atores, cantores e bailarinos que correspondiam, cada vez mais e com maior capacitação e ajustamento, aos padrões exigidos pelas empresas exportadoras. Em paralelo, desenhava-se, em especial na década de 1990, um tipo de musical à brasileira, com personagens da música e do teatro, que eram reverenciados como  fórmula de integrar o repertório da vida com a vivência artística. Nesta temporada, essa fórmula, já desgastada, reencontrou em produções, nem sempre muito cuidadas, a possibilidade de atrair plateia. Dedicados a cantores e compositores (Ney Matogrosso, Clara Nunes, Gonzaguinha, Cazuza, Belchior, Dominguinhos, Zé Ramalho), a décadas, e estilos, literatura e até a hotéis, a oferta foi variada, mas um tanto tímida de fugir aos maneirismos das repetições.

domingo, 8 de outubro de 2023

Voo Livre

 


Talvez seja um ensaio triplo sobre cenas de “A Gaivota”, de Tchekhov. Ou fragmentos cênicos na tentativa de estabelecer unidades contrastadas de linguagens. E ainda, exercício performático de filosofar sobre o caos que nos cerca. Também jogo teatral que desloca regras e técnicas do processo (projeto) para o produto (publico). “Voo Livre” pode ser tudo isso, e mais alguma coisa que instigue o espectador para decolagem própria. Em cartaz por quatro semanas no Sesc Copacabana, o tríptico teatral dirigido por Marcio Abreu se divide por títulos - Arte, Tempo, Futuros –, que se combinam no mesmo arcabouço de sustentação, mas com expressões autônomas. Aparentemente, sem pretensões maiores, senão a de tatear desdobramentos que a narrativa russa e convidados (poetas, filósofos, ensaístas) sugerem ao encenador-autor, a proposta arranca com a liberdade de experimentar (meios, modos, maneiras). Na base desta investigativa dramaturgia cênica, há o que dizer, especular, tocar em tensões (da arte, da realidade, do desconhecido). Sem qualquer resquício de impositivos ou de certezas, mas de somente percurso poético, em que a força da palavra é o que sustenta o olhar aberto ao instável, ao incerto, ao improvável. Em uma frase com alguma ironia sobre o como fazer e dizer, uma das atrizes resume ao que se assiste: “filosofando em torno de caos lá de fora”.  O tempo do teatro se confunde com o verso de Leda Maria Martins e melodia de Felipe Storino: “No tempo o corpo bailarina bailarina/no corpo o tempo espirala espirala/  nos cosmos tudo baila revoa remoinha”. O tempo de vida e criação acaba num estalar de dedos, não importa os rituais e desejos de prolongá-lo ou adiá-los. A intermitência do tempo deixa a existência na rotina de gestos  e quedas, em movimentos de partidas e expulsões, de passagens sem nenhuma permanência. À volta de mesa e cadeiras do cotidiano, o mundo e a arte se enredam na brutalidade e poética, fixando-se neste voo livre de uma cena instigante, simbolizada na imagem de escultura em parque de Berlim, em memória da vítimas do nazismo. Como diz Nina, personagem de “A Gaivota”, na leitura sensível de Renata Sorrah: “Os homens, os leões, as águias e as perdizes, os veados, os gansos, as aranhas, as estrelas marinhas e todas as criaturas invisíveis aos nossos olhos, tudo que vive, tudo e todos, após percorrer o seu triste ciclo mortal, estão agora extintos”.