domingo, 3 de setembro de 2023

Brás Cubas e seu Duplo

Em simultâneo, duas montagens do romance “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis, estão em cena com diferentes diretores e autógrafos maiúsculos. Moacir Chaves assina “Menino é o Pai do Homem” (título de um dos capítulos do livro), na Cidade das Artes, e Paulo de Moraes, “Brás Cubas”, no Teatro II do CCBB. Não parece coincidência, essa duplicidade de visões sobre uma mesma obra, mas abordagens teatrais paralelas da primorosa construção literária que se debruça, com ironia e mordacidade, sobre tantos fins e nenhum legado, “senão aquele da nossa miséria”. Machado, que escreveu peças e exerceu a crítica, se mostra  íntegro em encenações tão contrastantes e inventivas . 

“Menino é o Pai do Homem”: direção de Moacir Chaves

Na entrada da sala, um recanto sugere ambientação do tempo de Machado, levando a pensar que tal visual anteciparia montagem evocativa, de contornos documentais. Primeira impressão que se desfaz ao entrar na sala, e ser abrigado por dispositivo cênico multimídia, de efeito plástico, a que o iluminador Paulo César Medeiros definiu como “Nave de Luz”, e o cenógrafo Sérgio Marimba desenhou como palco-instalação, em que cortinas transparentes e espectadores em frontalidade com a “ação”, são envolvidos por imagens e palavras. O texto machadiano, essencialmente literário é contido em  universo visual para encontrar sua teatralidade. A exposição cênica recria o ritmo da leitura dos capítulos, mantendo em linha a força expressiva do original e a modulação interpretativa do elenco. Os atores em pequenas oscilações vocais e andamento corporal definido, percorrem os meandros machadianos sem quaisquer destaques ou  ênfases. Caminham por sua inteireza. A concepção uniforme , seja de voz e de movimento, refina o tom narrativo nos pontos mais sensíveis que perpassam o que diz o “defunto-autor”. A envolvência da plateia, não se dá apenas pelas projeções (anúncios de venda de escravos, fotos da geografia urbana, frases soltas), mas como a direção, com a mesma acuidade do escritor, aponta para as contradições de sociedade insepulta,  

“Brás Cubas”: direção de Paulo Moraes

Na dramaturgia de Maurício Arruda Mendonça, e na encenação do grupo Armazém,  “Brás Cubas” se multiplica por três: o morto que conta; o personagem que vive; e o autor que “atualiza” o tempo. Em tantos corpos, o homem que fala de si e de seu mundo, não se frustra de usar da ironia para descrever “negativas”, as suas e do seu arredor. Num espaço cenográfico de elementos contemporâneas (quadro de giz, microfone, músico), essa trindade atua sobre o texto, cumprindo papel de sublinhar o que pode estar oculto na voz do morto. Machado interfere com comentários e alusões a si mesmo, enquanto Brás narrador dialoga com o Brás captado em ato. Essa divisão, permite que as aproximações temporais sejam traduzidas por cena intensa e ruidosa de imagens atraentes. A direção e a adaptação buscam integrar a palavra na ação, naquilo em que possa trazê-la à cena de forma explícita, sem barateá-la nas conotações atribuídas pela “adaptação”. Pelo contrário, valoriza e amplia seus significados, em provocativos e coloridos capítulos/cenas. Paredes são pichadas, hip-hop é ouvido, cabeça de hipopótamo aparece de surpresa, cortejo carnavalesco é revisto como citação, em quadros figurados que trazem vigor de palco a fluxo narrativo de livro. A cena final, com peso de tantas negativas, ganha tom poético, e amplia, no balanço em cavalinho de brinquedo, o testamento de uma vida, em que “não houve míngua nem sobra”, mas peso de negativas.