segunda-feira, 12 de novembro de 2018

Temporada 2018


 Crítica/ “Dogville"
Imagens borradas de áspera exposição

Há convergências para muito além das semelhanças de entrecho entre “A visita da velha senhora” e “Dogville”. Se no texto do suíço Friedrich Durrenmatt, antiga moradora de uma pequena cidade está de volta para cobrar dívida moral, no filme do dinamarquês Lars Von Trier, forasteira aparece em um vilarejo para desmascarar o que mentiras contêm de verdades. No percurso de ambos, desvendam-se atitudes hipócritas e emoções fictícias, que conduzem à áspera exposição de sentimentos. Grace chega a Dogville, aparentemente fugida da perseguição de um gangster, e convive com essa empobrecida comunidade através de jogos de indiferença, simulacros de aceitação e  virulência de negação. Em um prólogo e nove capítulos, a tragédia se desenha como parábola de existências e pulsões em estado bruto. Ao submeter a intrusa ao cotidiano estratificado de uma humanidade escondida entre montanhas e dissimulada em sua condição, eliminam-se as possibilidades de vida, restando apenas a sobrevivência de um cão. Na direção de Zé Henrique de Paula, o original fílmico adquire autonomia cênica, ignorando as questões formais que Von Trier teatralizou no cinema. A estrutura dramática, distanciada pela narração e interposta por ação realista, se realiza, na mesma, nesta versão em cartaz no teatro Clara Nunes. A montagem se propõe como painel, arcabouço de um quadro em que fica borrada a nitidez das cores e o contorno das figuras. O diretor transpõe para dramática muralista a expressão de um conjunto sem indivíduos, manietado como grupo. O cenário de Bruno Anselmo com telas em aramado, onde são projetadas imagens gravadas e ao vivo (de Laerte Késsimos), confirma a distensão do espaço de representação que se pretende demarcar como ficcional. As movimentações de cadeiras, ao mesmo tempo, composição visual e apoio interpretativo, complementam com o figurino cinzento (de João Pimenta) e a iluminação bem desenhada (de Fran Barros) conferindo a esse mural o único personagem relevante: o coletivo. O elenco de 16 atores – Mel Lisboa, Eric Lenate, Fábio Assunção, Bianca Byngton, Marcelo Villas Boas, Ana Toledo, Rodrigo Caetano, Gustavo Trestini, Fernanda Thurann, Thalles Cabral, Chris Couto, Blota Filho, Munir Pedrosa, Selma Egrei, Dudu Eichel e Fernanda Couto - enquadrado na alegoria reveladora da visita de uma jovem, corporifica atos em imagens e  palavras em crueldades.