quarta-feira, 1 de agosto de 2018

Temporada 2018/ São Paulo


Crítica/ "Ítaca – Nossa Odisseia 1"
Reprodução  de tempos e transposições de imagens

Em “Ítaca – Nossa Odisseia 1”, que a diretora Christiane Jatahy apresenta no Sesc Consolação, em São Paulo, transborda o oceano de Homero para navegar por ondas contemporâneas. O épico se divide em tempos, heroicos e atuais, e em palcos, duplos e ilhados, para desaguar em confronto de linguagens, de texto e visual. O fracionamento de temporalidades provoca o embate calculado das palavras e das imagens com seu poder de representação. Dos cantos de Homero são retiradas referências aos percalços de  Ulisses na caminhada a Ítaca, e o assédio a Penélope na longa espera pela sua volta. A complexidade do poema épico se revela atraente à encenadora pela possibilidade de transpor os limites do canône para transcrevê-lo em atualização dramática. A cena se ambienta em uma festa, naquele ponto de efusão, seguido de melancolia, que desnuda rupturas. É partir desse tensionamento que são transcritas passagens homéricas para situar a guerra permanente dos dias de hoje, as circulantes questões feministas e o registro dos migrantes, políticos e econômicos, que aportam na costa europeia. Violações, exílio, violência, destruição se inserem neste clima de fim de festa, ainda que no transporte os depoimentos de refugiados soem como vozes perdidas e a implicação política se reduza a alusões. A criação de Christiane Jatahy impõe múltiplas categorias narrativas, tanto no plano da dramaturgia, como na estrutura formal. Perde-se na tentativa de similaridades, e arrisca-se a produzir efeitos estetizantes. Há uma virtuosística engenharia cênica na utilização de símbolos projetados na onipresença da água ou na divisória-tela da cortina de fios. Os dois espaços que dividem a plateia são intercambiados pelo público, que troca de posição e de perspectiva do que assiste, até que os lados se encontrem em área e narrativa únicas. Os três Ulisses (Cédric Eechout, Karim Bel Kacem e Mathieu Sampeur) e as três Penélopes (Isabel Teixeira, Julia Bernat e Stella Rabelo) se digladiam em interpretações performáticas de guerras intermitentes, projetadas em imagens captadas pelo próprio elenco. Com tantas interseções, a palavra se afoga na ação física e na água que brota do piso. É necessário “explicá-la”, como prova intervenção de uma atriz, no início da segunda parte, decodificando o que se viu e verá, e ainda nas leituras quase ao final. O impacto dessa arquitetura, solidamente construída, não acoberta a disfuncionalidade da dramaturgia.