quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Temporada 2018

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (14/2/2018)

Crítica/ “Preto”
Fluxo de interrogações diante de silêncio coletivo e de pensar o impossível
O fogo de um incêndio cênico assola o espaço da procura da identidade, de onde surgem vozes com perguntas sobre tantas desigualdades quantas se quer que sejam superadas. A chama se espalha em rastilho de formas que compõem um quadro em estilhaços de diferenças, que se materializam em dúvidas de como se ver e ser visto. Uma conferência nada convencional é o ponto de partida para que o corpo dialogue com a sua capa social e reflita sobre o papel que desempenha para si e o outro. Físico e imagem se confundem na ausência de reconhecimento e na rejeição perturbadora, e se medem pelas possibilidades da unidade pelo afeto. “Preto”, instigante montagem da Companhia Brasileira de Teatro, busca uma dramaturgia de sensibilização, que traz das salas de ensaios e da experimentação em residências criativas, propostas indefinidas dos percursos. Ao espectador são apresentadas cenas que desvendam seus processos de construção e se desdobram como flagrantes da atual complexidade de convivência. As entrevistas banais de celebridades fazem contrapeso ao desejo em reverberação sonora. A citação a um espetáculo interpretado por uma das atrizes na carreira bem sucedida, reverte personagens para desfazer julgamentos. Atores dançam exaustivamente para imprimir ao físico uma sensualidade de enfretamento. O discurso nunca é direto e as metáforas ganham significados reais, em movimentos de conotação política e distensão perceptiva. O olhar captura ilustrações de palavras, que se ouvem como ruídos fragmentados e sentidos divergentes. Não há uma narrativa com lógica dramática, mas fluxo de interrogações que deixam mais incertezas, que renovam as perguntas para as mesmas indefinidas respostas. Esse contínuo interpelar, conclui-se com um microfone dirigido à plateia, símbolo de um silêncio coletivo ou do estímulo por decifrar modos de dialogar. O diretor Marcio Abreu coordena essa sinfonia de dissonâncias com visão integrada da gramática de investigação e de protocolos teatrais inconclusivos. É da natureza de “Preto”  a instabilidade dos meios para alcançar os fins expressivos, e que tem no público, o elemento de mediação das linguagens, ainda que, por vezes, estabeleça algum descompasso pelo estranhamento que provoca como antítese de interlocução. O elenco afinadíssimo – Cássia Damasceno, Felipe Soares, Nadja Naira, Renata Sorrah e Rodrigo Bolzan – tem em Grace Passô uma fogueira que acende, de corpo e alma, a labareda de “pensar o impossível”.