quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

Temporada 2018

 Crítica do Segundo Caderno de O Globo (31/1/2018)

Crítica/ “Boca de Ouro”
A imagem de Villela emoldura a palavra de Rodrigues

A primeira cena de “Boca de Ouro”, na versão de Gabriel Villela, é embalada pela marchinha “Cidade maravilhosa”, e celebrada com confete e serpentina. É o solitário momento em que a tragédia carioca do bicheiro de Madureira sugere a cidade, prenunciando em ritmo lento e alusão carnavalesca a sua violência suburbana. O que ambienta a narrativa de Nelson Rodrigues está para além do Rio, da sordidez de um parto em uma pia e da morte atingida por balas perdidas nas desigualdades. Boca sobrevive à sina da origem,  construindo para si, representações de seu oposto, numa riqueza que mastiga as misérias e deglute a mítica de um Drácula periférico e de um deus Asteca alegórico. Do que é realidade, sobra apenas a compra do que lhe foi negado e do que o distancia do abandono do começo. Neste arco em que o personagem é revisto em três narrativas, o autor inclui as suas mais sensíveis obsessões (sexualidade, destino, crônica e tragédia), que incontáveis montagens privilegiaram em variadas opções. A direção de Villela é, decisivamente, mítica, dispensando geografias e desenhando uma dramaturgia de imagens. Nelson emoldura o traço inconfundível do diretor que, não por acaso, também assina a cenografia e os figurinos. O quadro se impõe à palavra, em permanente comentários visuais aos diálogos, referendando exuberância ilustrativa, em mão contrária ao trágico. O texto mostra alguma dificuldade em se amoldar ao afresco de dourados e brilhos, detalhes e adereços, que inundam o olhar e embotam os ouvidos. Dedos com dedais imitam os sons do batucar na máquina de escrever. Imitação da voz de apresentadora de televisão, transforma personagem em tipo. A trilha musical abusa das emoções derramadas de sambas-canção e de exaltação do repertório de Dolores Duran, Herivelto Martins, Lupicínio Rodrigues, João Bosco e Aldir Blanc. Cenas de desconcertante beleza, se alternam com gadgets figurativos, acompanhando a interpretação melodramática do elenco. A montagem acaba por estampar humor involuntário, possível de ser absorvido pelo original, mas tirânico quando dominante. Mariana Elisabetsky, a cantora que assinala com voz dramática a ação na gafieira (ou seria um cabaré europeu de início de século?), dá o tom evocativo. Mel Lisboa recondiciona Celeste com sensualidade de ninfeta. Lavínia Pannunzio (Dona Guigui) e Claudio Fontana (Leleco), ao lado de Chico Carvalho (Caveirinha e Maria Luísa) conferem aspecto mais rodriguiano às suas atuações. Malvino Salvador ( Boca de Ouro) não dispõe da malandragem e de jogo de cintura para avançar de bicheiro-boxeur a entidade asteca. Cacá Toledo, Guilherme Bueno, Leonardo Ventura, e o pianista Jonatan Harold contribuem para esse retoque panorâmico da escrita cênica de Nelson Rodrigues.