domingo, 23 de abril de 2017

Temporada 2017

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (23/4/2017)

Crítica/ “O misantropo”
Acidez crítica à hipocrisia social

Já na entrada ao teatro, são ouvidas marchinhas carnavalescas que, para além de sonorizar, antecipam o espírito da tradução e adaptação de Washington Luiz Gonzales e o estilo da direção de Marcio Aurélio para “O misantropo”, clássico do século XVII do francês Molière. Quando os atores entram em cena, com figurino com toques antropofagicamente tropicalistas, parecem prontos para um baile carnavalesco, e não para festa em salão dos tempos do rei Luís XIV. Mas a nacionalização temporal do quadro, se mantém apenas como ambientação inspiradora de semelhanças entre a hipocrisia das disputas sociais e astúcias da natureza humana. As aproximações de lugar e tempo se conjugam pelo misantrópico desvendamento dos males e vícios do homem. Seja no país do carnaval ou no desfile da corte europeia. A atual versão, sem comprometer a integridade e a métrica originais, condensa a ação verbal a ritmo fluente e a estrita narração na parte final. Os cinco atos originais e a versificação dos diálogos adquirem outra dinâmica que não restringe o arcabouço formal e a agudeza dos diálogos. Em pouco menos de duas horas, as irônicas e desiludidas observações de Alceste, apaixonado por Célimène e que se descobre traído, confirmam o que propõe como consciência social. A montagem de Marcio Aurélio segue, com inventiva movimentação e agilidade cênicas, a adaptação abrasileirada, avizinhada na evocação crítica da comédia clássica francesa. A caracterização do elenco, com o figurino de citação à época e intervenção nacionalizada da dupla Marcio Aurélio e André Liber Mundi, e a cenografia de cadeiras de acrílico assinada pelo diretor, compõe o visual de uma comédia em que a palavra, mais do que a situação, conduz o jogo dramático. Os atores correspondem às exigências da verbalização do humor de costumes, desidratado de maneirismos e da comicidade de resultados. Washington Luiz Gonzales  é um Alceste em exaltada duplicidade, atento às suas teses e inseguro em relação às suas emoções. Paula Burlamaqui circula pela arena-salão com a elegância e dissimulação de  Célimène. Regina França veste com figurino extravagante a maledicência de Aricene. Joca Andreazza, em fardão acadêmico, transmite o ridículo do intelectualismo de ocasião. Alexande Bacci, Eduardo Reyes e Renata Maia participam, com inteligência interpretativa, dessa leve e solta aclimatação de uma comédia clássica a tempos menos leves e soltos.