sexta-feira, 10 de março de 2017

Temporada 2017

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (10/3/20170

Crítica/ “Gisberta”
Sobriedade para encenar uma butalidade

Gisberto era seu nome verdadeiro, que seria Gisberta quando assumiu o papel de travesti. Suas inquietações e as hostilidades que a ameaçavam nas boates e ruas paulistanas a levariam a Portugal, onde foi cruelmente assassinada. A história real deste garoto que deixou a família, aos 18 anos no final da década de 1970, para viver de shows e drogas na cidade do Porto, se estende por depressão e aids, e termina com a morte, com o corpo jogado no poço de um prédio abandonado. O texto de Rafael Souza-Ribeiro constrói, biograficamente, as transformações e vivências de alguém que, desde a infância, convive com a inadequação de gênero, e que sobrevive mal a um roteiro que lhe é imposto pelos preconceitos e cumprido em reação autodestrutiva. A narrativa é minuciosa na origem familiar e na construção da nova imagem identitária, detalhista no desenho de um certo ambiente gay e contundente no ato final. Descritiva, sem projetá-la em perspectiva, a dramaturgia se fraciona e alonga na sequência de pequenos acontecimentos, descaracterizados e em frágil contexto. As quebras de tensão dramática se mostram desequilibradas, como nas rápidas pausas da irmã para verificar o assado na cozinha. A imagem nunca mostrada de Gisberta, se mantém oculta como o mistério pessoal que as suas cartas enviados do Porto não revelam. O caráter crítico e emocional, pretendido pelo autor, se consolida na leitura da sentença do juiz ao declarar as penas dos meninos assassinos, de 14 a 16 anos, e na descrição jornalística dos antecedentes e da atuação dos menores. O tecnicismo jurídico e as condicionantes  sociais da vítima e dos infratores se desnudam com nitidez e ampliam a percepção de um quadro amplo em restam a travestis e a meninos abandonados a condenação dos excluídos. A sobriedade cinza da cenografia de Mina Quental, o figurino de formas recortadas de Gilda Midani e a trilha sonora e música original de Lúcio Zandonati balizam na linearidade do monólogo a direção de Renato Carrera. O ator Luis Lobianco permanece no plano da narração, como se configurasse o percurso de Gisberta como leitura dramática.