sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

Temporada 2017

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (27/1/ 2017)

Crítica/ “O topo da montanha"

Conexão de atos humanos com desígnos divinos

Há uma originalidade indisfarçável no texto da americana Katori Hall sobre o último dia de vida de Martin Luther King, líder pelos direitos dos negros na década de 1960 nos Estados Unidos segregacionista. A ambientação é realista e as circunstâncias, factuais. O cenário do desfecho é real e o discurso, provocador de ação política. A trama converge do humor encoberto por pistas enganadoras ao fantástico de situações ilusionistas. Desses variados impulsos dramáticos, emerge o personagem humanizado por hesitações existenciais,  pela dependência do cigarro e a constatação do chulé, e ainda pelas contradições entre a religiosidade e ativismo. O Martin Luther King de “O topo da montanha” se mostra, tanto como o homem diante da sua própria condição, como o político na iminência de interromper a sua escalada libertária. Na noite anterior à sua morte, em abril de 1968, o pastor, hospedado em hotel de Memphis, aguarda a chegada de um auxiliar que foi à rua comprar cigarros. Enquanto espera, pede à copa, um café, trazido por uma camareira atraente e falante. É o ponto inicial da longa noite morte adentro, na qual papéis sociais se invertem, hierarquias místicas se impõem e divindades têm sexo e etnia trocados. A conversa se desdobra entre seduções mútuas e um clima de estranheza que se estabelece num plano de convivência que não parece convencional. Até que com um truque de teatro e fala vigorosa (trecho do pensamento de Malcolm X, outro líder negro assassinado) revela a verdadeira identidade da camareira. O eixo da trama é deslocado para a conexão dos atos humanos com desígnios divinos. Discute-se, a partir desse reviravolta, o anúncio da morte e as consequências individuais e coletivas da sua inevitabilidade. O homem deseja a extensão da sua vida, e o ativista, a continuidade da batalha ainda longe da conquista. A quem deixar o legado e como manter pulsante a batalha? A autora conclui o que parece estar no centro de sua dramaturgia: levar adiante um pensamento interrompido pela intolerância ativa ainda hoje. A escrita, com seu realismo disfuncional, adquire tonalidades narrativas nos apelos à mobilização e na exposição de um pensamento. Na montagem de Lázaro Ramos e  na codireção de Fernando Philbert ficam evidentes os diversos climas dramáticos do texto, sem que quaisquer deles, predomine. Os diretores não caíram na armadilha de ressaltar o humor e o fantástico, sugerindo mais o aspecto alegórico de interlocução absurda que, de outra maneira, se confundiria com  conversa excêntrica. No caminho até ao delírio do impossível, a dupla soube criar, a partir de universo concreto, mundo de singularidades, que convergem para a explosão de imagens de fatos e personalidades históricos. A cenografia de André Cortez situa, em detalhes, o quarto de hotel para ampliá-lo na cena final e transformá-lo em base para as projeções do fundo. A sequência ágil e expressiva de fotos e vídeos da tela-painel tem assinatura de Rico e Renato Vilarouca. A participativa trilha sonora original é de Wladimir Pinheiro e a iluminação oportuna de Valmyr Ferreira. Os atores estão em sintonia fina com a mobilidade climática das estações dramáticas do texto. Oscilam dos ares do humor ao calor da emoção, acompanhando os pendulares ventos narrativos. Taís Araujo está mais identificada com as características do humor que envolve a surpreendente e misteriosa argumentação da camareira. A atriz mantém, no mesmo registro, com pequena modulação, a trajetória da personagem. Lázaro Ramos oferece à humanidade de Luther King a emoção do ativista político.