sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Temporada 2016

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (18/11/2016)

Crítica/A paz perpétua" 
A matriz humana do mundo cão
O espanhol Juan Mayorga transfere questões humanas para condicionamentos animais. Cachorros, de raças e instintos diferentes, disputam sob o adestramento de um homem a coleira branca, prêmio para o melhor desempenho no treinamento antiterrorismo. Cada cão corresponde a uma categoria, da força bruta ao filósofo, do cínico ao sobrevivente, cabendo a voz de comando a quem manipula a irracionalidade das disputas. As diversas provas a que são submetidos para a escolha do melhor, eliminam mortalmente os demais, projetando comportamentos éticos-políticos-sociais em inescapável dependência da matriz selvagem. A singularidade da narrativa não está apenas na reversão da existência a uma fábula que ilustra preceito moral, mas em visão do mundo como metáfora de decomposições. Os bichos adquirem o papel de sujeitos de ações que lhe são impostas, reproduzindo em atos domesticados, humanidades brutalizadas. Criado o paralelo, o autor propõe que se “ouse saber” para além do estranhamento e dos significados aparentes, buscando em referências à filosofia e em reflexões contemporâneas, material para narrativa mais expositiva de teses do que de dramaturgia cênica. Não por acaso, o título é emprestado de obra de Immanuel Kant e a existência de Deus discutida à luz de Pascal. O diretor Aderbal Freire-Filho manteve circulando os planos expressivos (ação e proposição), sem privilegiar quaisquer deles, dosando intensidades dramáticas ao compasso dos conceitos. O cenário, também assinado por Aderbal, evita a obviedade de um bunker-prisão para situar em um espaço de convivência, a revelação cautelosa e progressiva da natureza dos personagens. A movimentação corporal e os ruídos caninos adquirem tal integridade que servem à palavra interpretada, e não ao gesto mimético. O diretor investe no desvendamento das variadas camadas que o texto visita, permitindo experimentá-las com a liberdade do livre-pensar, como sugere a leitura niilista de Mayorga. O elenco percorre em passos, marcadamente contínuos, os escaninhos das revelações. João Velho sustenta o cinismo de Odin, o cão de raça mista e faro apurado para o abandono e a solidão. José Loreto se empenha com habilidade física para liberar a força bruta e a fraqueza intelectual do adestrado John-John. Kadu Garcia imprime distância às hesitações do filósofo Emanuel. Alex Nader, o cão paralítico, rege a seleção dissonante dos ganidos. Gillray Coutinho é o som humano que subordina a competição pela coleira da sobrevivência.