quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Temporada 2016

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (19/10/2016)

Crítica/ “Amor em dois atos” 
Relação amorosa exposta do fim ao começo

Na atração e rompimento de um casal, os laços são frágeis como os sentimentos que os movimentam ao longo do tempo. Os impulsos de cada um dos gestos, que iniciam e terminam histórias, se interpenetram com a porosidade das emoções sem a inalcançável fusão. Os dois textos do francês Pascal Rambert (“Encerramento do amor” e “O começo do a.”) se movem por essa dualidade extrema, configurada por palavras candentes na representação de personagens em explosões de furor e silêncio. O casal de atriz e diretor expõe, em seus monólogos interiores, como dialogam com o amor e de como o transportam da ruína à edificação. A discussão de relação repassa em clichês as vozes da paixão, revisadas pela impossibilidade de sustentação dos conflitos em bases românticas. O autor ambienta o percurso da dupla nos bastidores da prática teatral, exaltando o encontro dos corpos na aproximação, e o confronto no desfecho. Teatro e vida se confundem numa única construção de linguagens: atores interpretando suas existências e falas desvendando verdades. Frente a frente, nos papéis de provocador e ouvinte, desfiam amargura e rejeição, sobras do que foi encantamento e efusão. As palavras, assim como a envolvência do teatro,  dominam a luta sonorizada do dito com o peso do ouvido. Luiz Felipe Reis, que assina a direção, adaptação e concepção sonora e visual, foi engenhoso em reunir os dois textos do mesmo autor, invertendo a ordem de apresentação. A força expressiva maior está no título que encerra o amor, enquanto o seu começo é tão somente um ponto referencial. O que seria epílogo se transforma em introdução, e nesta sequência a montagem quebra apelos realistas ou psicológicos, desidratando as situações ao ponto de secar a emoção. O discurso é o eixo em torno do qual a palavra ressalta como idioma bruto, e não apenas apoio dramático. Seco na interlocução entre  clamor e escuta, a aspereza do embate se concentra no essencial da exposição contida das reações. No segundo ato, quando o texto é mais “informativo”, o diretor driblou os diálogos inexpressivos com batida de trilha explodida e atordoamento de ação performática. Otto Jr. se agarra ao jorro cruel da anunciada separação da mulher, de quem faz depositária de suas frustrações e ressentimentos. O ator alcança o equilíbrio delicado do vigor da agressão verbal e da fraqueza silenciada da resposta. Julia Lund responde com fragilidade ferida, mas com a carga de ironia do feminino magoado, a desconstrução afetiva a que é submetida a personagem. A atriz se mostra, especialmente sensível, nas reações caladas que ecoam corporalmente diante do abandono.