quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Temporada 2016

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (3/8/2016)

Crítica/ “Vaga carne”
O olhar e a voz  que ganham a luz 
No escuro completo do início, o que surge é apenas a voz. O que ela diz, tem a imaterialidade do som e antecipa, sob o mistério do escuro, o que está por vir. Uma voz que se apropria de um corpo, trespassado por dúvidas e invadido por questões exteriores, e que desagua conflitos. A atriz e autora Grace Passô constrói “Vaga carne” com fragmentos de palavras murmuradas no espaço vazio, que ganham a luz, articuladas pela ação física. O ruído é a fresta que se desenha para introduzir a inteireza corporal a ser transformada em ato cênico. Palavras e corpo se misturam em referências vagas a desajustes e deixam entrever um enredo fraturado. Mantendo tensão entre o que é capturado pelos sentidos (fala e movimento) e o que se liquefaz pela representação (diálogo e performance), Grace contorna os limites do solo para ampliar o alcance de suas possibilidades. O corpo da atriz é invadido pela voz da mulher, em íntima e desequilibrada convivência que não se constitui em narrativa. Provoca sugestões de olhar para uma identidade perplexa, e de ouvir o barulho de uma expressão imponderável. Grace Passô é uma atriz, diretora e autora com uma teatralidade sensorial para penetrar no oculto com meios fronteiriços à estranheza. Nada parece direto, mas sempre é frontal. Neste monólogo performático, a frontalidade se revela como um corpo invadido por palavras, e essa materialidade abstrata se torna absoluta em cena. O caráter conceitual que marca a atuação, retira o sanguíneo da carne exposta, ainda que a presença da cor na interpretação se mantenha viva. A destacar a iluminação de Nadja Naira.