quarta-feira, 25 de maio de 2016

Temporada 2016

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (25/5/2016)

Crítica/ “O camareiro”
As incertezas de uma dedicação no mundo teatral

Nada mais inglês do que o texto de Ronald Harwood. Reunindo um velho ator de saúde frágil e lapsos de memória e seu camareiro que o acompanha com adorada subserviência na companhia shakespeariana em excursão pelo interior durante a Segunda Guerra, a narrativa é deslocada para os bastidores, pouco antes de mais uma encenação de “Rei Lear”. O intérprete de Lear não está em condições de entrar em cena, estabelecendo o conflito entre o camareiro, que o impulsiona para o palco, e os demais componentes do grupo, em dúvida se terá forças para concluir a sua performance. A ação decorre a partir dessa incerteza, se desenvolve, como suspense, durante a sessão, e se conclui, melodramática, após os aplausos finais, em paralelo a tramas pessoais da trupe e referências às liturgias teatrais. A guerra, que ameaça a integridade do elenco e dos espectadores, é a metáfora para o enfrentamento pela arte da perda da razão. E não por acaso, que o ator interpreta o rei envelhecido e enganado por duas de suas filhas, e o camareiro se confunde com o bobo na função de revelar o que encobre o ridículo. Há muito de perversidade e egoísmo na convivência do ator e seu assistente, acentuada na eminência de mortes, em cena e fora dela, com as quais, sobrevive, com igual perversidade e  egoísmo, a tragédia de Shakespeare. A convergência de situações e o paralelismo de estilos foram tratados pelo diretor Ulysses Cruz como  exposição  dos mecanismos cênicos e da teatralidade do jogo realista. O olhar do autor, a partir da coxia, é acentuado pela forma intensa como o diretor espreita os duelos de sentimentos por trás da cortina. Amplia as emoções ao ponto de deixá-las livres na condução do humor e arrebatadas no apelo dramático. A cenografia de André Cortez é reveladora das entranhas do palco, com os efeitos que provoca com as quedas depois de bombardeios e nos truques de produzir  raios e trovões. A trilha musical sugere, tanto  melodrama quanto ambienta as quebras de tensão. Apesar de Ronald Harwood  ter escrito a sua profissão de fé ao teatro com vários personagens, a centralidade está na finitude do ator veterano e, em especial, na fidelidade doentia do camareiro. Os demais, gravitam em torno da dupla, com maior ou menor intervenção. O elenco - Lara Córdula, Karen Coelho, Silvio Matos, Ravel Cabral e Analu Prestes – demonstra regularidade disciplinada. Tarcísio Meira se impõe com a sua imagem popular ao personagem, numa presença referencial de carreira. Kiko Mascarenhas circula entre o humor e melodrama com a dedicação de conquistar a plateia com as várias possibilidades oferecidas pelo camareiro. O ator não desperdiça o protagonismo.