quarta-feira, 18 de maio de 2016

Temporada 2016

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (18/5/2016)

Crítica/ “Gota d’água (a seco)”
Instinto interpretativo para uma Joana compacta 

No mesmo espaço, na estreia, em 1975, Teatro Tereza Rachel, hoje, Teatro Net Rio, se apresenta o musical de Paulo Pontes e Chico Buarque, que transfere a tragédia “Medeia” para um conjunto habitacional de subúrbio carioca. Numa versão a seco, com apenas os personagens centrais, Joana e Jasão, elimina-se a metáfora política, condensando em ação corporal e ritualização de movimentos o dueto de um embate trágico. A adaptação e direção de Rafael Gomes exploram a essência dramatúrgica original com a intenção de reduzir a trama a uma sequência exploratória de gesto e voz com base na plasticidade. A montagem é umedecida por efeitos cênicos que suprem o campo dramático ceifado de sua ambientação e enxuto de detalhamento. A narrativa se constrói como imagens musicadas, que se capturam como quadros de uma ópera de câmera, que contrapõe o entrecho desidratado à corporificação sonora. Rafael Gomes compensa, nos limites restritivos dessa drenagem, os elementos que desapareceram na transposição, lançando dardos contrastantes, mirando a rotação do eixo inicial. O texto está no palco na sua inteireza, mas em vários pontos se desloca para alguma  rearrumação. A trilha sonora não corresponde, integralmente, à original, já que são introduzidas outras canções de Chico Buarque e a que dá título ao espetáculo aparece quase de maneira acidental. A linha de interpretação do casal de atores procura romper com a linearidade dramática/trágica, substituída por ardor físico, que, algumas vezes, pode ser confundido com efusão gestual. A cenografia de André Cortez, que parece um tanto literal no uso de galões de água, e que tira um belo efeito quando se transformam em ampulheta, é intrigante na sugestão dos prédios e pesada como módulos integrantes do jogo cênico. Os figurinos de Kika Lopes têm desenho atemporal e estão ligados à oscilação dos corpos, em especial na ampla saia, que acompanha, em volteios de raiva, o balé de Joana. A iluminação de Wagner Antônio é fundamental, ao lado da direção de movimento de Fabrício Licursi e da concepção mini-operística de Rafael Gomes, na rega visual dessa apropriação ressecada. A luz lateral na cena da bruxaria e o delicado foco na inesperada ampulheta são dois momentos de iluminação que reforça a identidade de um musical clássico, atualizado no tempo e na produção. A direção musical de Pedro Luís  e os músicos Antônia Adnet, Dudu Oliveira, Elcio Cáfaro, Marcelo Muller e Pedro Silveira sustentam a qualidade da trilha sonora. Na compactada distribuição dos papéis, o solitário cara a cara do casal Joana e Jasão necessita de contracena forte e antagonismo radical, sem o qual a aspereza, o lirismo e a tragédia na construção da vingança ficam pela metade. Alejandro Claveaux dimensiona, apenas parcialmente, o Jasão de subúrbio, o compositor alpinista social que se defronta com a mulher imperiosa de quem não consegue suportar a sua intensidade de viver. Já na primeira cena se mostra contido como cantor, e ao longo do espetáculo tem dificuldade de equilibrar, com maior vigor, a sua interpretação diante da atuação energética da sua comparsa. Laila Garin com voz dramática e instinto interpretativo, ocupa a cena como uma solista de posse de instrumentos afinados no vigor de um temperamento de atriz que implode a interioridade e explode a exposição.