sábado, 28 de maio de 2016

Temporada 2016

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (28/5/2016)

Crítica“A outra casa”
A emocionada perda da memória
A neurologista Juliana expõe a plateia de médicos um novo remédio desenvolvido por ela, mas surpreende os ouvintes com comportamento dissonante da racionalidade científica. A presença de uma mulher de biquíni amarelo na assistência, invisível para os demais, confunde-se no seu discurso e mostra os sinais de dissociação no presente das memórias do passado. A perda progressiva da razão, uma ironia para quem se debruçou profissionalmente sobre a mente, reconta na forma de estilhaços da cronologia a integridade de sua história. Na narrativa decomposta entre a lucidez (a realidade e os fatos) e a demência (a fuga e o delírio), o autor americano Sharr White acompanha a personagem até ao “outro lugar” que, não por acaso, é o título original. No texto, tecnicamente urdido, o desenvolvimento dramático, marcado pelo ritmo das revelações e pela atmosfera de estranhamento, adquire maior carga na primeira parte ao desfazer com intrigante minúcia os fios desencapados da ruptura emocional. A segunda parte, percorre o trilho bem assentado de um jogo de armar, em que as peças se encaixam para completar o quadro. Ainda que construída com habilidosa instrumentação artesanal, a dramaturgia antecipa reações em contraponto a possibilidade de um clima mais denso. Envolvente e provocativa em muitas cenas, “A outra casa” na direção de Manoel Prazeres persegue a ambientação emocional, integrada ao compasso investigativo do entrecho. A evolução narrativa se baliza pelas situações, mas com recursos ao despojamento cenográfico e a circularidade na movimentação dos atores equilibra os meios expressivos, e assim o diretor mantém o interesse do espectador. Simplicidade é o tom e a emotividade o fim. Mesmo a exiguidade do palco do teatro Cândido Mendes, e a proximidade com a plateia, dois entraves físicos que poderiam interferir, prejudicando o realismo da cena, ficam superadas pela modéstia e franqueza de intenções da montagem. No elenco, Daniel Orlean tem menores intervenções. Marcos França, e em especial Gabriela Munhoz, procuram conquistar espaço interpretativo num território em que o destaque está com a personagem Juliana. Helena Varvaki desenha a neurologista que se desprende da realidade em plena sintonia com a desorientação de Juliana, em atuação sensível e delicada.

quarta-feira, 25 de maio de 2016

Temporada 2016

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (25/5/2016)

Crítica/ “O camareiro”
As incertezas de uma dedicação no mundo teatral

Nada mais inglês do que o texto de Ronald Harwood. Reunindo um velho ator de saúde frágil e lapsos de memória e seu camareiro que o acompanha com adorada subserviência na companhia shakespeariana em excursão pelo interior durante a Segunda Guerra, a narrativa é deslocada para os bastidores, pouco antes de mais uma encenação de “Rei Lear”. O intérprete de Lear não está em condições de entrar em cena, estabelecendo o conflito entre o camareiro, que o impulsiona para o palco, e os demais componentes do grupo, em dúvida se terá forças para concluir a sua performance. A ação decorre a partir dessa incerteza, se desenvolve, como suspense, durante a sessão, e se conclui, melodramática, após os aplausos finais, em paralelo a tramas pessoais da trupe e referências às liturgias teatrais. A guerra, que ameaça a integridade do elenco e dos espectadores, é a metáfora para o enfrentamento pela arte da perda da razão. E não por acaso, que o ator interpreta o rei envelhecido e enganado por duas de suas filhas, e o camareiro se confunde com o bobo na função de revelar o que encobre o ridículo. Há muito de perversidade e egoísmo na convivência do ator e seu assistente, acentuada na eminência de mortes, em cena e fora dela, com as quais, sobrevive, com igual perversidade e  egoísmo, a tragédia de Shakespeare. A convergência de situações e o paralelismo de estilos foram tratados pelo diretor Ulysses Cruz como  exposição  dos mecanismos cênicos e da teatralidade do jogo realista. O olhar do autor, a partir da coxia, é acentuado pela forma intensa como o diretor espreita os duelos de sentimentos por trás da cortina. Amplia as emoções ao ponto de deixá-las livres na condução do humor e arrebatadas no apelo dramático. A cenografia de André Cortez é reveladora das entranhas do palco, com os efeitos que provoca com as quedas depois de bombardeios e nos truques de produzir  raios e trovões. A trilha musical sugere, tanto  melodrama quanto ambienta as quebras de tensão. Apesar de Ronald Harwood  ter escrito a sua profissão de fé ao teatro com vários personagens, a centralidade está na finitude do ator veterano e, em especial, na fidelidade doentia do camareiro. Os demais, gravitam em torno da dupla, com maior ou menor intervenção. O elenco - Lara Córdula, Karen Coelho, Silvio Matos, Ravel Cabral e Analu Prestes – demonstra regularidade disciplinada. Tarcísio Meira se impõe com a sua imagem popular ao personagem, numa presença referencial de carreira. Kiko Mascarenhas circula entre o humor e melodrama com a dedicação de conquistar a plateia com as várias possibilidades oferecidas pelo camareiro. O ator não desperdiça o protagonismo.  

domingo, 22 de maio de 2016

Temporada 2016

Crítica/ "Como me tornei estúpido" 
Inspiração no livro para descobrir do que rir

Como se fazer estúpido para se provar inteligente e escapar das pressões que assolam o cotidiano. Experimentar-se como tolo para superar o que se oferece como valor tão inconsistente quanto a necessidade de adotá-lo é uma tática para não sucumbir às tantas e falsas exigências contemporâneas. Deste modo, o personagem central do livro do francês Martin Page, adaptado para o teatro por Pedro Kosovski, faz tentativas de se alinhar com a maioria para se sentir como integrante e participante do todo. Vale tudo para não ficar de fora, numa escalada radical de tornar-se alcoólatra ou mesmo investir no suicídio. A ironia e o ceticismo que marcam o impulso do solitário num mundo de vulgarização, que está na base do livro, fica em plano secundário na versão cênica. As referências ao consumismo, seja em citações de publicidade, a cantores e pintores populares, e ainda ao mundo digital, antes de acrescentar bônus cômico, paga pedágio à facilidade da banalização. Não que o humor de Page seja especialmente sofisticado, mas se estrutura em outro plano, o do humor verbal e não da comédia de situações. No palco, mesmo que seja necessário criar uma cena com autonomia e características  próprias, a ausência de equalização com a comicidade original, leva à perda da eficácia do translado. Fica-se sem saber do que rir, se das simplificações das brincadeiras ou dos aforismos do autor. Sérgio Módena escolheu ampliar as indicações menos sutis da adaptação, acentuando a tonalidade mais popularesca e diluindo as cores acentuadas da sátira. O diretor ativa a cena com intenso movimento e acelerada troca de quadros, numa velocidade que atrapalha, igualmente, o resultado da equação humorística. O quarteto do elenco – Alexandre Barros, Gustavo Wabner, Marino Rocha e Rodrigo Fagundes – se empenha em manter o ritmo agitado e o jogo cômico. Como demonstram alguma identidade com o humor de comunicabilidade direta, mantêm suas interpretações em sintonia com a proposta do adaptador, traduzida, regradamente, pelo diretor. 

quarta-feira, 18 de maio de 2016

Temporada 2016

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (18/5/2016)

Crítica/ “Gota d’água (a seco)”
Instinto interpretativo para uma Joana compacta 

No mesmo espaço, na estreia, em 1975, Teatro Tereza Rachel, hoje, Teatro Net Rio, se apresenta o musical de Paulo Pontes e Chico Buarque, que transfere a tragédia “Medeia” para um conjunto habitacional de subúrbio carioca. Numa versão a seco, com apenas os personagens centrais, Joana e Jasão, elimina-se a metáfora política, condensando em ação corporal e ritualização de movimentos o dueto de um embate trágico. A adaptação e direção de Rafael Gomes exploram a essência dramatúrgica original com a intenção de reduzir a trama a uma sequência exploratória de gesto e voz com base na plasticidade. A montagem é umedecida por efeitos cênicos que suprem o campo dramático ceifado de sua ambientação e enxuto de detalhamento. A narrativa se constrói como imagens musicadas, que se capturam como quadros de uma ópera de câmera, que contrapõe o entrecho desidratado à corporificação sonora. Rafael Gomes compensa, nos limites restritivos dessa drenagem, os elementos que desapareceram na transposição, lançando dardos contrastantes, mirando a rotação do eixo inicial. O texto está no palco na sua inteireza, mas em vários pontos se desloca para alguma  rearrumação. A trilha sonora não corresponde, integralmente, à original, já que são introduzidas outras canções de Chico Buarque e a que dá título ao espetáculo aparece quase de maneira acidental. A linha de interpretação do casal de atores procura romper com a linearidade dramática/trágica, substituída por ardor físico, que, algumas vezes, pode ser confundido com efusão gestual. A cenografia de André Cortez, que parece um tanto literal no uso de galões de água, e que tira um belo efeito quando se transformam em ampulheta, é intrigante na sugestão dos prédios e pesada como módulos integrantes do jogo cênico. Os figurinos de Kika Lopes têm desenho atemporal e estão ligados à oscilação dos corpos, em especial na ampla saia, que acompanha, em volteios de raiva, o balé de Joana. A iluminação de Wagner Antônio é fundamental, ao lado da direção de movimento de Fabrício Licursi e da concepção mini-operística de Rafael Gomes, na rega visual dessa apropriação ressecada. A luz lateral na cena da bruxaria e o delicado foco na inesperada ampulheta são dois momentos de iluminação que reforça a identidade de um musical clássico, atualizado no tempo e na produção. A direção musical de Pedro Luís  e os músicos Antônia Adnet, Dudu Oliveira, Elcio Cáfaro, Marcelo Muller e Pedro Silveira sustentam a qualidade da trilha sonora. Na compactada distribuição dos papéis, o solitário cara a cara do casal Joana e Jasão necessita de contracena forte e antagonismo radical, sem o qual a aspereza, o lirismo e a tragédia na construção da vingança ficam pela metade. Alejandro Claveaux dimensiona, apenas parcialmente, o Jasão de subúrbio, o compositor alpinista social que se defronta com a mulher imperiosa de quem não consegue suportar a sua intensidade de viver. Já na primeira cena se mostra contido como cantor, e ao longo do espetáculo tem dificuldade de equilibrar, com maior vigor, a sua interpretação diante da atuação energética da sua comparsa. Laila Garin com voz dramática e instinto interpretativo, ocupa a cena como uma solista de posse de instrumentos afinados no vigor de um temperamento de atriz que implode a interioridade e explode a exposição.                        

quarta-feira, 11 de maio de 2016

Temporada 2016

 Crítica do Segundo Caderno de O Globo (11/5/2016)

Crítica/ “Memórias de Adriano”
Uma adaptação com horizontalidade

Não são poucas as armadilhas para a adaptação de obra literária para o teatro. Os recursos para a transposição se contraem na medida da complexidade do original e pelas dificuldades enfrentadas, no novo meio expressivo, de projetar a integridade do modelo. E não se trata apenas de uma questão formal, mas de estabelecer correspondência em estilos distintos. A versão teatral do romance  “Memórias de Adriano”, de Marguerite Yourcenar, assinada por Thereza Falcão, tem o inegável mérito de condensar o relato autobiográfico em formato epistolar de Adriano ao seu sucessor no trono, com o mínimo de perdas previsíveis no percurso do transporte. O imperador e suas batalhas na guerra política  e o homem de amores duplos e dúvidas incontáveis, emergem, na escrita de Yourcenar, com força narrativa da vida que definha e do poder que exerce. A extensão desta grandeza existencial que o livro dimensiona em contexto histórico, sofre restrições e reducionismo quando ambientada para o palco. É inevitável que isso aconteça com linguagens em escala diferente, mas as exigências de entrecho e tempo cênicos diminuem a densidade do que é construído como literatura e absorvido no ritmo das frases. Inez Viana busca atualização temporal que, ao que parece, tentaria aproximar a plateia de um universo que soa distante e pouco comunicativo. Se esta foi a razão, a diretora acentuou o que a adaptadora não procurou driblar. A presença de músico em cena se justifica para preencher os intervalos entre os movimentos do ator. Ao cenário, com painel de radiografias, é possível atribuir tantas interpretações quanto é intrigante a exposição das chapas. A troca de figurino, de um robe-túnica romano a um terno atual, pouco contribui para melhor situar o espectador. O uso de microfone e a introdução de canção italiana também fazem parte da intenção de tornar menos pretensioso o que pediria alguma solenidade. Luciano Chirolli com físico e voz portentosos, tira partido dessas características numa atuação em que lhe é exigida agilidade e projeção sonora. A imponência da sua figura não compensa relativa uniformidade na apropriação das palavras nuançadas e na alternância de estados emocionais definidos.            

quarta-feira, 4 de maio de 2016

Temporada 2016

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (4/5/2016)

Crítica/ "Garrincha"
Um ídolo popular empacotado por linha de montagem luxuosa
Em “Garrincha”, Bob Wilson não foi menos Bob Wilson por abordar um personagem brasileiro. Mas a nacionalidade deglute mal o que lhe é servido como um prato cultural pronto e frio. Os efeitos de luzes e a pasteurização dos movimentos estão em cena, assim como a descontinuidade narrativa e a sequência de cenas como quadros vivos. Os cortes marcados por cliques sonoros e as palavras silabadas para esvaziá-las de qualquer emoção, se mantêm intactos. A compartimentação da trama, apenas sugerida, fica congelada em imagens que mais fixam do que desvendam. Os efeitos visuais e sonoros se repetem como expressão de uma dramaturgia cênica cada vez mais associada ao estilo de uma grife. Mané Garrincha, por qualquer das perspectivas que o artista americano o abordasse, escaparia como personagem do design que o aprisiona em gaiola ascética, bem diferente daquelas em que criava seus passarinhos em Pau Grande. Suas pernas tortas e  improváveis dribles não se ajustam à coreografia rígida de um balé de estética congelada. Os acidentes pessoais e o amor embriagador deixam de ser histórias para se desfazerem em simbologia de aparência. A casa interiorana, de onde o jogador sai  para o mundo, e a trilha com trechos do Repórter Esso e jingles publicitários da década de 60/70 se desfazem na arquitetura imaginária do mito ingênuo e no contexto artificial de citações literárias. Corre paralelo, um espetáculo de music-hall à americana com trilha, em sua maioria composta em processo colaborativo pelo elenco, o sexteto musical e o autor Darryl Pinckney. A presença de araras comentaristas, que gralham a sequência das cenas, carnavalizam, ao lado de um intruso Groucho Marx, o esfumaçado arranjo dramático. Entre as cenas, diante da cortina, os atores fazem pantomimas simplórias e emitem sons repetidos, no embalo de onipresente chorinho. Até mesmo a administração do tempo, tão preciso nas encenações de Bob Wilson, sofre com momentos mortos, ao que parece, necessários para a troca de cenário. E como é previsível, o visual se impõe com a explosão de neons e a grandiosidade árida dos elementos, um tanto deslocados pelo folclórico brilho dos figurinos. Do elenco, asfixiados na estrutura interpretativa rígida e imutável do diretor, Jlhe Oliveira é um Garrincha coadjuvante. Naruna Costa vive uma Elsa Soares, misto de cantora de soul e tiques de atriz de Hollywood. Lígia Cortez e, em especial Bete Coelho, compõem com movimentos exatos e vozes irônicas, as araras narradoras. Luiz Damasceno é um bufão solitário.  Os demais atores cumprem com a funcionalidade exigida, os papéis performáticos de figuras cantantes. A máquina teatral de Bob Wilson continua na produção em série de artigos, luxuosamente empacotados e tecnicamente bem acabados, vendáveis pelo rótulo. Ao desaparecer nesta linha de montagem, Garrincha pode ser lembrado como um mito sobrevivente, como na sua vida, que, antropofagicamente, devora uma estética, como seus revezes, que lhe seria indiferente.