segunda-feira, 7 de março de 2016

Temporada 2016

Críticas do Segundo Caderno de O Globo (de 25/2/2016 a 6/3/2016)

Crítica/ “Alice mandou um beijo”
Comemoração das fraturas familiares
A narrativa de Rodrigo Portella se configura como drama memorialista com traços psicológicos. A morte da Alice do título deixa acirradas as tensões familiares dos sobreviventes, que a partir do desaparecimento da caçula, se debatem, acuados pelos limites da cidade pequena em que vivem. As lembranças são desencadeadas pelas relações instáveis que explodem com  intensidade desagregadora com ausência da morta. O movimento circular dos membros desse clã, restrito a dar voltas em torno da dependência mútua, não deixam que saiam do lugar. Presos ao casarão da família e ao espaço afetivo de suas contradições, alimentam esses laços doentios com os atritos da convivência. De puro realismo e estrutura dramática alinhada ao desenho definido de personagens, à linearidade da ação e à coerência nos diálogos, o texto é, não só, bem acabado. Propõe com o naturalismo com que observa atitudes, uma aproximação com a plateia que facilita  a comunicabilidade do entrecho, mas sem baratear seus fundamentos teatrais. A atmosfera que envolve os conflitos guarda alguma lembrança, ainda que em outra escala, daquela que ressalta do romance “Crônica da casa assassinada”, de Lúcio Cardoso. O diretor Rodrigo Portella acompanha o autor no bom acabamento da montagem. Na cenografia de Raymundo Pesine, em que armários e gavetas escondem roupas velhas, emoções inúteis e festas fracassadas, a posição frontal dos móveis dimensionam a área do embate das relações. Na iluminação de Renato Machado os contrastes se estabelecem com oscilante  claridade. Nos figurinos de Daniele Geammal, os atores vestem a imagem realista dos personagens. Na trilha sonora de Leo Marvet, a sonoridade faz contraponto às inquietudes. Na orquestração desta desafinada família, o diretor desarticula os pontos de atrito, mantendo um mesmo balanceamento no ritmo e no clima da trama, que sofre com um certo alongamento que retira-lhe, em  parte, a sintética sustentação dramatúrgica. O elenco, que defende personagens com características encobertas, correspondem a cada um deles com cuidados de preparação. Bruna Portella como a irmã que cuida dos parentes, à custa de sua anulação, agarra-se ao papel com força, o que às vezes, destoa da insegurança de Jandira. Vivian Sobrino, a outra das irmãs, está menos segura na interpretação da dubiedade de Oneida. José Eduardo Arcuri empresta sua figura ao pai abstraído do que se passa com os seus. Tairone Vale está um tanto contraído pela indefinição do viúvo, enquanto Luan Vieira encorpa com ótimo trabalho de corpo e voz, o menino Robério.  

Crítica/ “O primeiro musical a gente nunca esquece”
Os desequilíbrios de um musical a esquecer
Sob o abrigo do gênero,  “O primeiro musical a gente nunca esquece” alinhava vários remendos num patchwork roto. Nesta costura mal feita, os pontos de arremate são frouxos e se esgarçam à menor tentativa de vesti-los de musical. Uma coletânea de jingles comerciais se mistura a canções de “O mágico de Oz” e “A noviça rebelde”, entre algumas outras, artificialmente introduzidas por uma trama pífia, sem que o conjunto tenha o mínimo de coerência e validade cênica. A sucessão de comercias  não se encaixa, senão pelo fato de personagens estarem ligados a agência de publicidade. Os hits das comédias musicais surgem pela insustentável admiração da mocinha pelas luzes da ribalta. A dedicação do marido pela trabalho e os gadgets eletrônicos o afasta da mulher, a romântica que encontra nos musicais o escape da indiferença do cônjuge. O aniversário de 20 anos de casamento, provoca na esposa uma espécie de transe, que faz com que se comunique apenas através das canções mais populares das peças da Broadway e do West End. Ao absurdo desta comédia musical de erros, não escapa a ligeireza com que o autor e diretor Rodrigo Nogueira reuniu material tão desconexo e com indesculpável concessão ao clichê e à diluição do que se  propõe ser comercial. O espetáculo longo, de 100 minutos com intervalo, usa muita cor na cenografia de Jackson Tinoco para dar um pouco mais de vida à arquitetura convencional do espaço, com a contribuição da iluminação de Adriana Ortiz. Rodrigo Negri e Priscilla Mota recorrem a códigos coreográficos exaustivamente explorados por tantos musicais, sem que introduzam qualquer originalidade. A direção musical e arranjos de Tony Lucchesi mantém-se no plano do bom artesanato, que se estende à execução dos sete instrumentistas. Numa produção com uma malha extensa de equívocos, cabe ao elenco a função de porta-voz e o papel de dar corpo a tão desastrado bordado.  Os atores-cantores bailarinos – Lellane Teles, Fabiana Tolentino, Deborah Polistchuck, Carol Botelho, Marco Ferrari, Leandro Melo, Junir Zagotto e Pedro Arrais – têm participações na medida das restritas exigências coreográficas. O quinteto central – Amanda Acosta, Marcelo Varzea, Bia Montez, Reiner Tenente e Hugo Kerth – se distribui por características de melhores cantores do que comediantes, ainda que todos empenhados a não sucumbir ao pouco estímulo às suas interpretações. 

Crítica/ “Depois do amor”
Imitação pouco inspirada de uma estrela cadente
A exemplo de como escreveu “Callas”, seu texto anterior, encenado há dois anos, Fernando Duarte escolheu para biografar um momento da vida de  Marilyn Monroe. Frágil, com problemas com álcool e tranquilizantes, o autor focaliza a atriz quando recebe a figurinista do filme “Something’s got a give” para prova de roupa e para uma conversa áspera sobre a amizade interrompida no passado, pela  disputa amorosa entre ambas, vencida por Marilyn. A instável e pouco consistente situação dramática que sustenta esse enfretamento sem conflito real, se revela pretexto para um monólogo  envelopado por diálogos, meras escadas para que a estrela exponha suas fraquezas. A indisciplina diante das imposições do estúdio e a insatisfação emocional que a levariam a morte são exploradas como compilação de fatos que não  alcançam complexidade de uma personalidade destrutiva. Fernando Duarte mergulha no mito, no que é possível reconstruir a partir da imagem e da cópia do que foi tantas vezes visto e reconfirmado como retrato da diva do cinema. A ideia é reproduzir, refazer um quadro já bastante conhecido com a preocupação de ser o mais fiel possível ao original. E como se sabe,  as cópias não passam de banalizações. A ideia de refazer é levado ao ponto do figurino usado por Danielle Winits ser idêntico, no corte e na estampa, aos dos seus últimos filmes e fotografias. A montagem também segue essa trilha imitativa, com projeções dispensáveis da atriz. Maria Eduarda Carvalho como a figurinista e antagonista da estrela, permanece  com discreta equidistância  da centralidade da protagonista. A atriz supera com elegância a inexpressividade da personagem. Danielle Winits enfrenta, com apelo mimético, a tarefa de ser uma Marilyn verossímil. Em parte, consegue corporificar uma imagem, ainda que tenha maior dificuldade em interpretar os conflitos da mulher. O objeto sexual manipulado pela atriz que construiu a carreira, exatamente pela imagem, é ao que Danielle Winits recorre em atuação sincera.