Crítica do
Segundo Caderno de O Globo (21/2/2016)
Crítica/ “Caesar
– como construir um Império”
A encenação de Roberto Alvim submete a tragédia
de Shakespeare a fragmentos de vozes que se sobrepõem na construção de
sonoridade política que ecoa razões humanas, silenciadas pelo juízo inconstante
de suas motivações. Brutus justifica o assassinato de César por suposta ameaça
à democracia. Marco Antônio ao assumir o poder, estigmatiza Brutus que se exila,
e em crise de consciência, mata-se. Ao contrário de reproduzir os conflitos desenvolvidos
pela ação, o diretor concentra-se nos ruídos das falas que, em ondas subterrâneas
e impulsos velados, alcançam os embates para além da historicidade da
superfície. São camadas do discurso que convergem para a audição de intensidade
variada e para o olhar de foco na penumbra. Os dois atores em cena são menos os
personagens na tentativa de tornar física a palavra como expressão de verdades
manipuladas por certezas duvidosas e pelo esfacelamento da dimensão humana da política.
Tanto que ambos se revezam nos papéis, construindo monólogo único que é o cenário
abstrato para as situações concretas. O que cada um diz, representa formas de argumentação
e justificativa para seus atos, sem que se lhe atribuam determinada carga
dramática. A adaptação e direção de Alvim se apoiam em uma cena fria e sem
emoção, que concentra, num quadrilátero com o piso recoberto por moedas e delimitado
por luzes retilíneas de neon, o espaço de enunciar e de expor dissonâncias. A
ambientação em meia luz, sempre em busca do escuro, complementa, entre tons sussurrantes e pequenas elevações de voz,
o cenário para a música, rascante e visceralmente integrada à narrativa, de Vladimir
Safatle. A dupla de atores sustenta o sentido trágico das palavras, tateando
seus contornos poéticos e eloquentes com vigor e contenção. Caco Ciocler e
Carmo Dalla Vecchia projetam desenho corporal em que a rigidez serve à
solenidade ritualística, e as falas em nuança, a justificar o furor da razão. Na
última cena, a do suicídio de Brutus, o encontro dos intérpretes traduz, com impacto
visual e tensão rarefeita, os inevitáveis conflitos no exercício do poder. “Caesar
–como construir um Império” é um espetáculo em contraluz e murmúrios, de beleza
áspera, que propõe, a quem tenha disponibilidade à escuta, o jogo cético da
política e as dubiedades do
comportamento niilista do indivíduo.