quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Temporada 2015

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (18/11/2015)

Crítica/ “O beijo no asfalto”
Nova trilha para um beijo 

A versão musical de “O beijo no asfalto” impõe ao texto de Nelson Rodrigues uma pulsação diferente. O gesto de Arandir ao beijar um desconhecido, atropelado por lotação na Praça da Bandeira, não perde a integridade narrativa com a introdução de trilha sonora. Ganha musicalidade paralela, absorvida organicamente pela trama, sem qualquer enfraquecimento do original. São canções escritas por Claudio Lins e outras tantas da década de 1960, ano em que a peça foi escrita, que ilustram e comentam a manipulação perversa de um ato de bondade. A ação adquire a cadência de um metrônomo dramático, no qual o ritmo é marcado pela música que antecipa e avalia numa forma de distanciamento e de decantar a emoção. A musicalização, ao mesmo tempo em que funciona como apoio, não interfere apenas como adereço ou aposto à corrente narrativa. Dialoga com o entrecho se tornando um elemento a mais que dimensiona, sob ótica sonora, a “tragédia carioca”. As músicas e letras   de Claudio Lins se insinuam no formato de coparticipação, integradas ao fluxo dramático sem roubar-lhes intensidade e coesão, criando uma terceira e fluente via expressiva. O diretor João Fonseca equaliza som e palavra em frequência única, modulando a interferência das canções no frasismo rodriguiano, ressaltando a convergência rítmica de pontos, aparentemente, dissociados. A habilidade com que Fonseca introduz as músicas evita que se desprendam do eixo do texto, articulando o quadro geral, similar a uma legenda que complementa a fotografia. A primeira cena, que antecipa a final, baliza toda a encenação no modo como costura o drama ao musical, anunciando uma base possível de dramaturgia nativa para o gênero. Ainda que a trilha não seja excepcional, e a direção esbarre em  alguns descompassos, a versão atual de peça tão encenada recebe sopro cênico que traz outros ares ao teatro de Nelson Rodrigues. O cenário de Nello Marrese, com aramados móveis e páginas de jornal, cria espaços vazados para as trocas de ambientes. A iluminação de Luis Paulo Nenén penetra por entre a trama do cenário, retirando belos efeitos. A ausência de urdimento no palco do Teatro das Artes prejudica melhor aproveitamento do desenho visual da montagem. O figurino de Claudio Tovar concede maior reverência ao teatro musical do que ao vestir os personagens de “O beijo no asfalto”. A direção musical de Délia Fischer e o conjunto de músicos acompanham o elenco com boa formação vocal. Em papéis mais episódicos, Ricardo Souzedo, Juliana Marins, Juliane Bodoni, Pablo Ácoli e Gabriel Stauffer procuram destacar-se nas suas pequenas intervenções. Janaína Azevedo é uma vizinha de voz poderosa. Jorge Maya faz  do assessor de delegado um sambista. Claudio Tovar e Thelmo Fernandes desempenham com vontade a pusilanimidade do delegado e do jornalista. Yasmin Gomlevsky interpreta com malícia a irmã Selminha. Gracindo Jr. surpreende como cantor. Claudio Lins compõe mais no físico do que no temperamento o atormentado Arandir. Laila Garin demonstra estar vocacionada a qualquer tipo de musical, além de confirmar  suas qualidades de atriz.