quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Temporada 2015

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (30/9/2015)

Crítica/ “Abajur Lilás”
Exposição hiper-realista da miséria humana
Escrita em 1969, “Abajur lilás” forma com  “Dois perdidos numa noite suja” e “Navalha na carne” o núcleo duro da dramaturgia de Plínio Marcos. Fotografias em alta resolução de um universo à margem, em que a miséria humana e conflitos sociais se manifestam em linguagem direta e ríspida, esses textos resistem ao tempo pela sua força implosiva. “Abajur lilás” marca  diferenças em relação às narrativas do mesmo período, pela caráter, reveladoramente político, que Plínio imprime a áspera convivência de prostitutas exploradas por um cafetão. As mulheres, submetidas ao poder de quem as tiraniza, são pressionadas, sob tortura, a delatar a responsável por um ato de revolta contra a ordem do prostíbulo. A violência, antes de ser vivida como metáfora política, é mostrada na sua dimensão social, em que um quadro hiper-realista de agressões verbais e falência moral se desenha como provocação. É clara a intenção de desacomodar o espectador e incitá-lo a reagir, até mesmo pela repulsa, ao que parece chocante pelo seu realismo. O propósito de Plínio Marcos se mostra eficiente até os dias nada censurados de hoje, quando o público, confrontado com diálogos que não economizam palavrões e expõem situações afrontosas, ainda deixa o teatro, agredido na sua sensibilidade. E, efetivamente, o autor não se limita na utilização desses recursos, que se revelam a razão e fundamento de uma obra que sobrevive na medida dessas características tão demarcadas por traços borrados. Renato Carrera reforça o acento realista das cenas com uma direção que dilata o clima tenso ao ponto de explodir em suores, babas e palavras gritadas. A encenação é expandida tal como os gestos dos personagens, que explicitam em movimentos reais, atitudes íntimas, que se deixam ver como ação natural. A primeira cena e as passagens de tempo criam com realística projeção, uma atmosfera densa que abre espaço ao desnudamento da ação dramática. Carrera administra com segurança a base naturalista da trama, com a construção de narrativa cênica delineada num fio desencapado na iminência de estourar num curto circuito. O ambiente, sempre próximo da combustão, é de uma crueza sem disfarces no cenário de André Sanches e na iluminação de Renato Machado. As telhas translúcidas e os baldes e urinol de serventia às intimidades invadidas, ganham significação da luta emocional perdida desde sempre. A preparação corporal de Felipe Koury é determinante na virulência da cena de tortura. A direção musical de Alexandre Elias determina, com precisão, as interferências sonoras. Higor Campagnaro resolve pela caracterização mascarada e pela composição física o papel sombrio do torturador impotente. Eber Inácio estabelece com pequenas flexões a inconstância do cafetão. Laura Nielsen, Larissa Siqueira e Andreza Bittencourt não se restringem a coragem da exibição, mas demonstram a       integridade de intérpretes que deixam as personagens em rascante exposição.