quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Temporada 2015

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (19/8/2015)

Crítica/ “Mantenha fora do alcance do bebê”
A adoção de um mundo ameaçador 
No texto de Silvia Gomez, o absurdo da realidade é exposto em sua lógica desordenada. A candidata à adoção de uma criança desencadeia em conversa com a assistente social suas improváveis razões para conseguir levar um bebê para casa. De um lado, a burocrata com suas ponderações e códigos de conduta, de outro, a postulante à maternidade desfiando lista de obrigações e argumentos, ambas observadas por representante, aparentemente domesticado, de um bando de lobos. A presença do marido, solicitada para contornar a situação, desvenda o obscuro e ilumina o desfecho. Os papéis sociais estão estabelecidos, e cada um desempenha suas funções como parte de um quadro em decomposição, no qual linguagem e comportamento estão nivelados por uma ordem comum. Na máquina coletiva de triturar as individualidades, os sentimentos se desestabilizam e são engolidos pela uniformização, que descaracteriza e por emoções desestabilizadas. Adotar um bebê desvenda a dor de uma perda e desmascara falsos desejos criados por necessidades impostas. A narrativa com diálogos afiados e atmosfera surreal, recorre a signos da dramaturgia do absurdo na tentativa de acentuar a padronização da natureza animal dos instintos. Um tanto marcada por essa influência, a autora mineira de 37 anos, expande com alguma originalidade e domínio da escrita os limites das referências, desfocando a veracidade num relato compacto e levemente provocativo. O diretor Eric Lenate lança tensão dissimulada pelo clima de estranhamento, capturada pelos gradativos sinais que as palavras apontam e a ambientação confronta. A brancura do cenário em movimento, a crueza dos adereços, o colorido da iluminação e a sonorização ameaçadora, abrem espaço ao supra-real e ao desencontro da insensatez com a banalização. A montagem mantém a plateia  em permanente inquietude, na expectativa do que virá em seguida, sintonizada no fluxo das motivações intrigantes dos personagens. O diretor acompanha com humor e desalento irônicos, e ao mesmo ritmo ágil da autora, o desenrolar da trama sobre uma sociedade sem perspectivas, assolada pela dança dos lobos. A primeira e a última cenas sintetizam e  adensam com força dramática, a imagem desoladora da vida normatizada. Diego Dac empresta o corpo à coreografia mascarada de uma fera sempre rondando e pronta ao ataque. Jorge Emil confere maior peso ao personagem circunstancial do marido. Anapaula Csernik em interpretação de conotação corporal, desenha a assistente social em mímica crítica à palavra burocrática. Débora Falabella demonstra segurança na apropriação do delirante esfacelamento verbal da mulher, devastada pelo choro de bebês e em alerta pela proximidade da animalidade imprevisível.