segunda-feira, 20 de julho de 2015

Temporada 2015

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (19/7/2015)

Crítica/ “Killer Joe”
A violência fronteiriça da banalidade

O texto de Tracy Letts, que se imagina mergulhar na América profunda, com seus outsiders encharcados de cerveja e desvios morais, é pouco mais do que um tiro de festim, prosaicamente diabólico e sem mira, em pretenso alvo provocativo. Um matador de aluguel é contratado por um homem para matar sua mãe, e assim receber o seguro e pagar dívida com traficantes. Toda a sua família é envolvida na trama, com direito a insinuações de desejo entre irmãos, mútuas traições e inescrupulosas emoções fronteiriças. O plano não dá certo, mas já de início se percebe o fracasso na construção dos personagens, fantoches a serviço da ação direta sobre um painel esquemático de violência. Letts investe na moldura que delimita o efeito, tornando mecânicas as figuras que movimentam o quadro. Esse retrato realista na aparência de verdade e acintoso na indução à repulsa, se desfaz no comportamento daqueles que o autor pretende representar como expressão do mal ao igualá-los na miséria humana. Antes de ser o drama psicológico que o roteiro gostaria de ser, “Killer Joe” se assemelha a pastiche involuntário de um “grand-guignol” (espetáculo caracterizado pelo bizarro com pretensão a criar pânico e horror). Mário Bortolotto, fiel à sua dramaturgia e carreira como encenador, está bastante à vontade para transpor ao palco esta narrativa, em tradução de Maurício Arruda Mendonça, com interpretações intensas e imagens brutalizadas. O diretor não economiza na crueza verbal e destempero físico para ampliar um pouco mais as fronteiras da indisfarçável misoginia e fúria empostada do autor. Sob a perspectiva da coerência e identidade, Bortolotto segue, em mais esta montagem, a mesma trilha das fotográficas provocações cênicas  que realiza com seu grupo Cemitério de Automóveis em São Paulo. Desta vez, há um cuidado maior com  a cenografia, assinada por Mariko e Seiji Ogana, que reproduz com alguma atmosfera o ambiente de um trailer. A sonoplastia e inserções sonoras, além dos efeitos especiais e coreografia das lutas, revelam um acabamento apreciável, que nem sempre se encontra na trajetória de Bertolotto. O maior destaque da direção recai sobre o trabalho do coeso e integrado do elenco. Fernão Lacerda reproduz a tibieza do chefe da família com convincente hesitação. Gabriel Pinheiro mantém o filho em nível de tensão alto. Ana Hartmann compõe a filha emocionalmente frágil com toques de perversidade. Carcarah, o assassino de aluguel, conduz com cinismo a escalada da violência. Aline Abovsky impressiona pela preparação para a cena em que a amante é humilhada.