quarta-feira, 17 de junho de 2015

Temporada 2015

Crítica do Segundo Caderno de O Globo ( 17/6/2015)

Crítica/ “O homossexual ou a dificuldade de se expressar”/“A geladeira"
Traços de identidades múltiplas de Copi
O multicriador Copi ultrapassa limites de identidade e transgride rotulações em provocantes desenhos da sexualidade e no desfoque na percepção da realidade. O franco-argentino instiga, em caricaturas e textos, dualidades de sim e não que, permanentemente, desmentem-se como expressão de ambiguidades individuais e quebra de parâmetros culturais. “O homossexual ou a dificuldade de se expressar” é demonstrativo desse universo inchado de anotações pessoais, referências políticas e citações teatrais. Duas mulheres, exiladas na Sibéria, pelo crime de mudança de sexo, são acossadas pelas ameaças de regime ditatorial e pelos lobos e o frio da estepe. Grávida, sem saber quem é o verdadeiro pai da criança, uma delas se mutila cortando a língua, enquanto se assiste ao exercício de poder, perverso e ameaçador, entre sexos dúbios e amores mutantes. Neste fim de mundo, em que o único médico se chama Feydeau (como o autor de “vaudeville” francês), a taberna tem o nome de Lenin e homens que se transformam em mulheres e procriam, os personagens estão de partida para a China, sem nunca decidir pela ida. Na evocação de “As três irmãs”, de Tchekhov e a alusão às criadas de Genet, Copi subverte narrativas para redimensionar desejos subterrâneos. Com o cenário sóbrio de Pedro Paulo de Souza, iluminação geométrica de Renato Machado, figurino de Antonio Guedes, o diretor Fabiano de Freitas cria um espaço de ilusão, em que a anatomia se traveste de seu contrário para encontrar uma terceira imagem, híbrida, que contenha as instâncias do desejo. Freitas transcreveu essa área sensível das volatilidades com detalhamento na interpretação do quinteto de atores. Fabiano Freitas participa, também atuando, como o militar. Higor Campagnaro, Lenardo Corajo, Maurício Lima e Renato Carrera têm bons momentos de contracena. No monólogo “A geladeira”, Copi se mostra como o desenhista de situações, estranhas, bizarras e contraditórias, que seguem rabiscos extravagantes. Um homem, no dia que completa 50 anos, depara com uma geladeira na sua sala, presente da mãe. A evolução delirante dos vários tipos em quem esbarra, de governanta a um rato, não permite que encontre, em tempo e lugar algum (ainda que Paris seja mencionada) razões para suas atitudes. O cotidiano se expande como sequência de absurdos que vão se desdobrando à medida que outros absurdos se embaraçam num fio de história de irrealista coerência. O único ator em cena é o protagonista de vários personagens que desafiam a lógica de mortes, estupros e drogas, e ao diretor é exigido orquestrar esse solo com batida nervosa, equalizada ao ritmo de ecos intrigantes. Thomas Quillardet tentou a sintonia, mas nem sempre atinge a melhor sonoridade. As soluções visuais, com o aparecimento do balão na área externa da Sala Multiuso e o efeito da preparação do bolo, na exata duração da montagem, tornam-se pouco relevantes na construção cênica. Marcio Vito revela empenho e dedicação ao longo dos 50 minutos em que adota variadas identidades, procurando individualiza-las na frenética corrida para corresponder à ação física. O ator, contraído pela necessidade de cumprir marcas, deixa em plano secundário, os traços do humor de Copi, que neste monólogo se traduz, mais como exercício de virtuosismo, do que síntese de uma obra.