domingo, 31 de maio de 2015

Temporada 2015

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (31/5/2015)

Crítica/ O Rinoceronte
Malabarismos para se manter humano
Bérenger, personagem da farsa metafórica de Eugène Ionesco, é alguém que se confessa inadequado, que se sente murado pelos que o cercam, incapaz de perceber o “real absoluto”. A crescente transformação em rinocerontes dos que vivem à sua volta, amplia o seu desajuste  e o devolve à solidão, como único sobrevivente à manada de paquidermes a que ficou reduzida a massa dos coletivos de pensamentos uniformes e comportamentos conformistas. Mesmo não se rendendo ao final, Bérenger confirma a irracionalidade da vida, apostando apenas na normalidade da morte. Até chegar a esta conclusão niilista, confronta a existência com a lógica formal e silogismos que levam ao absurdo da incomunicabilidade. Escrita no final da década de 1950, “O rinoceronte” se debruça sobre o homem médio, aquele que é ordenado por aquilo que está num improvável centro, autocondenado à padronização, um indivíduo sem expressão social. Mas apesar da integridade dramática, o tempo arranhou a contundência da metáfora e a força da imagem. O diretor francês Emmanuel Demarcy-Mota, do Théâtre de la Ville, procurou revigorar o que se desgastou, com encenação fixada em base visual e desenho corporal. Sem referências cenográficas realistas, com sugestões que lembram escritório, casa, bar, praça, os quadros se desdobram com cadeiras e adereços que compõem, ao lado de plataforma móvel, os diversos planos para a atuação malabarista do elenco. A luminosidade, ora difusa, ora explodida, determina os efeitos visuais. O melhor deles: o das figuras ameaçadoras dos rinocerontes. A sonoridade é outro dos elementos decisivos na tensão a que os atores correspondem com humor circense na cena do escritório e preparação física na totalidade delas. O elenco, para além de domínio corporal,  assume o texto de forma ritmada, quase discursiva, que distancia as interpretações de quaisquer resquícios  naturalistas. Hugues Queter (Jean), vence, com destreza vocal e física, a difícil transformação em animal brutamontes. Serge Maggiani (Bérenger) com atuação de definidos contornos, se destaca na poética cena inicial. 

quinta-feira, 28 de maio de 2015

Temporada 2015

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (27/5/2015)

Crítica/ O Grande Livro dos Pequenos Detalhes
Sinais invertidos de sentidos trocados

A dramaturgia e a encenação desta proposta de criar narrativa teatral pouco convencional são feitas através de contrastes, sinais invertidos e sentidos trocados. Há uma lógica no desmonte das formas de montar a trama como um quebra-cabeças que nunca se arma, e de construir a cena como o oposto do que é dado ver. As aparências são enganosas e as intenções parecem bizarras, nunca se concretizando, integralmente, as pistas que lança com método, mas objetivos difusos. A desconexão entre o tom narrativo e o entrecho expositivo é intencional e percebida pelo espectador com a estranheza da desarrumação. Para tornar ainda mais obscuros os caminhos deste percurso que se desmente a cada momento, são citados, indiretamente, o poeta inglês Philip Larkin e o filósofo alemão Theodro W. Adorno (“normalidade significa morte”). Já na primeira cena se propõe algo desconcertante: uma atriz estática e um ator com máquina que produz bolhas de sabão ficam longos minutos diante da plateia sem que nada aconteça.  Para em seguida, a dupla completar o grupo, que em torno de barraca de camping, apresenta sugestões banais para um vago departamento de clarificações e distrações. São desencadeadas ideias de diversão escapista e eficácia alienante, que variam de um novo chupa-cabra e de maneiras de distrair o povo com a vida da família real inglesa. Seria esse prólogo a antecipação dos elementos das histórias que se assistirá logo depois? Ou crítica ao modo como as narrativas se oferecem com significados fechados? Talvez a montagem não esclareça com os longas, falastrões diálogos de humor deslocado na trama do desaparecimento misterioso de uma locutora de rádio que noticia a situação do trânsito. E do funcionamento do departamento secreto que estuda possíveis divertimentos para que as pessoas esqueçam os problemas. O texto de Alexander Kelly, por demais inglês no seu humor e na adesão aos investigativos rumos de dramaturgia de múltiplas fronteiras, estabelece perplexidade diante de códigos a decifrar e associações a descobrir. A direção coletiva do elenco – Cláudia Gaiolas, Michel Blois, Paula Diogo e Thiare Maia Amaral – não facilita a fluência na apreensão de significados, que demonstra ser a provocação da desestruturada dramaturgia. Tanto como diretores quanto como atores, o elenco transmite empenho a uma concepção que aponta outras possibilidades de encenação, ainda que deixem à mostra bem mais o “processo de criação” do que o “produto final”. O desenho do espetáculo segue traços artesanais na simplicidade da cenografia de Elsa Romero, na iluminação de Wagner Azevedo e no coloquialismo da tradução de Alex Casal e Joana Frazão. O artesanato se estende às interpretações, com Paula Diogo sobressaindo como presença que melhor alcança os efeitos contrários do que sua atuação quer fazer acreditar.    

segunda-feira, 25 de maio de 2015

Temporada 2015

 Crítica do Segundo Caderno de O Globo (24/5/2015)

Crítica / Família Lyons
Relações familiares em estado terminal
O americano Nick Silver construiu universo dramático com características próprias em que as relações familiares se manifestam por comportamentos perturbantes, sustentados por um arco sentimentos, oscilantes entre humor cruel, conflitos psicológicos e vivências disfuncionais. Em “Família Lyons” não  é muito diferente, com o acréscimo de todas essas obsessões, mas agora em volteios em torno da morte. O patriarca está em seus últimos dias, vitimado por doença terminal, e sua neurótica mulher aguarda o desfecho planejando decorar a sala depois da morte do moribundo. Os filhos, ela uma alcoólatra agredida pelo ex-marido; ele, um jovem com sexualidade apoiada em fantasias, se desencontram em conflitos irreconciliáveis. Todos mergulhados em mútua solidão. Silver movimenta esses desencontros na borda do desespero com diálogos marcados por observações irônicas e situações ácidas. O seu jogo dramático está em buscar surpreender na mudança de rumos com que manipula as expectativas da platéia. A previsível morte do doente se compensa pelo inusitado reaparecimento. As características consolidadas dos filhos, sofrem reversão ao final. E a viúva dá um sentido inesperado à vida. Mas nem sempre esses truques funcionam com a necessária coerência de um texto realista que procura densidade psicológica. Deixam a impressão de que são apenas ‘gadgets” narrativos para reacender a atenção. Mas dentro da sua fórmula dramatúrgica, o texto funciona e provoca envolvimento. Marcos Caruso numa direção límpida, que valoriza o elenco, deixa que a montagem adquira fluência e leveza que contrabalancem eventual peso, o mesmo que o autor circunda todo o tempo. A tradução coloquial de Juliana Burneiko e a discreta direção musical de Marcelo Alonso Neves colaboram com a aura naturalista da montagem. O figurino de Patrícia Muniz, um tanto carregado para as atrizes, veste melhor os atores. A cenografia de Alexandre Murucci com a funcionalidade de persianas corrediças resolve as mudanças de ambientes e serve à eficiente iluminação de Felipe Lourenço. O elenco, em equilibrada sintonia, se mostra um grupo integrado: da quase episódica atuação de Rose Lima, como a enfermeira, ao jeito “gauche” de Pedro Osório, o misterioso corretor. Rogério Fróes  foge, com bom humor, da condenação à fatalidade vivida pelo personagem. Zulma Mercadante adota um ar um tanto elegante para quem, como a filha, vive tantos problemas. Emílio Orciollo Netto, quando supera a composição física maneirosa, adensa a sua interpretação. Suzana Faini se destaca, não só pela relevância e centralismo da matriarca, como pelo tom aparentemente leviano com que ativa as contradições familiares.    

quarta-feira, 20 de maio de 2015

Temporada 2015

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (20/5/2015)

Crítica/ A Atriz
À procura de se situar no tempo

A produção de A Atriz passou por problemas até a estréia, com elenco e direção parcialmente modificados. É evidente que esses percalços interferiram no resultado final, pela necessidade de ajustar e adaptar a nova equipe à estrutura anterior. As ressalvas ficam por conta do pouco tempo para ensaios e pela bravura de levar ao público uma montagem marcada pela tensão de tantas urgências. Mas à platéia, que desconheça esses antecedentes, e não é suposto conhecê-los, é oferecido um espetáculo que antes de refletir os problemas, demonstra desajustes de tempo e de avaliação artística. A começar pelo texto de Peter Quilter, que ao pretender exaltar o estrelismo de atrizes das primeiras décadas do século passado, e de servir de veículo para que a intérprete brilhe, mimetizando o personagem, revela apenas o anacronismo de um universo cênico que ficou no passado. Nem mesmo como registro nostálgico e retrato histórico de um certo ambiente teatral, a narrativa sobrevive a este acúmulo de clichês e de repetição de códigos desgastados. A atriz do titulo, que no seu florido camarim, se prepara para entrar em cena, na sua última aparição antes de abandonar a carreira, é atendida por camareira, mais ou menos fiel, e cortejada pelo ex-marido, por quem ainda é apaixonada. O futuro marido, outro dos visitantes, é um senhor senil, o filho, um mistério de sentimentos, o empresário, ambicioso, e o diretor, uma figura ridicularizada. Entre as conversas de bastidor, amores reatados, figuras cômicas do velho teatro, a atriz sobe ao palco para o ato final, numa consagradora apresentação de texto respeitável. O circuito teatral se completa, mas o viço de uma real construção cênica já foi perdida de saída. Com texto tão pouco estimulante, a diretora Bibi Ferreira, e em seguida Susana Garcia, reforçam convenções envelhecidas, respeitando, excessivamente, rubricas que, talvez, admitissem opção mais critica. O cenário de José Dias, não só resolve a difícil mudança de ambientes, como consegue um ar retrô para o camarim. O figurino de Sônia Soares, rico em detalhes e cuidadoso na execução, recria roupas de época. Stella Freitas cumpre com linearidade a função de camareira. Giuseppe Oristano desempenha o papel de galã maduro como o ex-marido. Bemvindo Sequeira evoca os velhinhos gagás das ”cortinas” (números de platéia) das revistas da Praça Tiradentes. Pedro Gracindo se mantém tão apagado quanto a falta de presença do filho. Cacau Hygino procura valorizar, pelo exagero, a participação secundária do empresário. Gabriel Gracindo não encontra uma linha de atuação que possa justificar o caricatural diretor. Betty Faria, concentrada em emitir o texto e seguir as marcas, não deixa espaço para que o glamour e o estrelismo apareçam, afinal é deste gênero de atuação que se pretende explorar com a montagem. A atriz, para quem convergem todas as atenções, não ocupa o lugar de “primeiro papel”, como se dizia nos espetáculos do início do século 20.         

domingo, 17 de maio de 2015

Temporada 2015

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (16/5/2015)

Crítica/ O Olho Azul da Falecida
Jogo de aparências em torno de um cadáver
Joe Orton, autor desta comédia macabra, com técnica de vaudeville e humor à inglesa, é um dos nomes surgidos na década de 1960 como um dos mais petulantes na dramaturgia britânica. Morto em 1967, teve uma produção pequena, mas coerente com suas características como autor. Demolidor de instituições sociais, comportamentos e tradições, utilizava formas consagradas de narrativa para destruir convenções e exercer comicidade ácida e, sutilmente, perversa. Mas seu universo foi provocante num período de mudanças políticas e quebras de códigos, no momento em que a Inglaterra assistia ao esfacelamento de seu império. Hoje, “O olho azul da falecida” é devolvida à sua medida de comédia bem estruturada, com diálogos com algum cinismo e ainda com potencial cênico, remanescente diluído do furor original. A trama reúne em torno do cadáver da mulher, o viúvo incapaz de perceber as tramoias que se passam à sua volta, entre o filho, que nunca mente, a agente que matou sete maridos, um ladrãozinho e um policial. O corpo da morta se torna um bem precioso, já que se mostra objeto de troca capaz de desvendar o caráter de cada um na corrida pelo ouro. Todos são corrompíveis. O único que não compactua se transforma em réu, culpado por sua inocência. A montagem de Sidnei Cruz se avizinha da atualização, discreta e cuidadosa, de acontecimentos que enviam sinais a referências locais. É um modo habilidoso de importar um humor tão característico, que, quase sempre, se perde na vontade de reproduzi-lo integralmente, mas que sofreu desgaste com o tempo. O diretor persegue a agilidade como efeito cômico, num tributo ao vaudeville, que está na base do texto. Mas essa escolha, que acelera a ação, por outro lado, diminui a eficácia dos diálogos, na sua eventual contundência crítica aos códigos vitorianos. O cenário de José Dias e o figurino de Samuel Abrantes procuram uma atmosfera inglesa mais reproduzida do que recriada. A iluminação de Rogério Wiltgen é ágil e a música de Wagner Campos, atuante. Johnny Ferro é inexpressivo na composição física de um “bobbie” (guarda inglês). Helder Agostini regula sua interpretação ao estereotipo do malandro carioca, e não a marginalidade de um garoto inglês. Rafael Canedo, em que pese o seu problema de emissão vocal, projeta a ambiguidade do jovem sempre verdadeiro. Gláucia Rodrigues não sustenta conduzir com centralidade a ação. Tuca Andrade, mesmo longe da figura de detetive da Scotland Yard, retira humor do personagem sonso. Mário Borges acentua a ingenuidade do único honesto neste jogo cínico das aparências.

quarta-feira, 13 de maio de 2015

Temporada 2015

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (13/5/2015)

Crítica/ Pahoma – Dança em Versos
Em busca do lugar onírico do teatro

O coreógrafo João Saldanha, em sua segunda direção teatral, se desprende da dança para estender seus passos à concretude da palavra. Modificam-se posições, mas mantém-se o espaço fragmentado das linguagens, representado pela voz emprestada ao corpo. Com o subtítulo de “Danças em versos”, “Pahoma”, um nome feminino, transita por formas expressivas que compartilham tempos narrativos para possibilitar o encontro e “localizar na        invenção o viver agora”. O texto e a encenação de Saldanha estão em permanente movimento, em que teatro e dança são meios dos quais se serve para ir na direção de “um lugar sem lugar dos nossos sonhos, as utopias”. É desse lugar nenhum do teatro, em que “inventamos diversas histórias e geografias” que o espectador preenche a cena, feita da voz onírica das dissonâncias e inutilidades e das distâncias e proximidades dos nossos dias. Da plateia, defronta-se com reverberações de uma vaga sensibilidade do momento, atualizada pela desordenada, urgente, solitária e descontruída incompreensão coletiva. Não há qualquer sentido filosofante ou pretensão a indicativos de autoajuda nesta súmula de comentários, delicados, bem humorados e provocantes, mas apenas sugestão a se deixar conduzir por observações contrastadas. A passagem rápida do tempo, uma das tantas citações à pressa de viver, é quebrada pela necessidade da ida ao dentista. O peso histórico do colonialismo é embalado por canção de Burt Bacarach. E até mesmo a frase  - “Tudo que a droga faz é matar você aos poucos” - que abre o espetáculo e a única que parece apontar para um efeito exemplar, serve de avaliação irônica à prisão de Billie Holiday. A montagem está envolta por cenário de João Saldanha, uma área branca, de profundidade e solo enevoados, que dispõe ao centro dispositivo-objeto, semelhante a um escorrega, pelo qual deslizam os altos e baixos da dança das palavras. Ainda que com aspecto um tanto pesado, esse tobogã cenográfico compõe o visual abstrato, poeticamente iluminado pelas depuradas mutações de cor de Russinho. A área branca que se confirma como enquadramento para projeção de sentidos, tantos quanto nos conduzem as palavras, cria com a trilha original de Sacha Amback paralelismo envolvente com o fluxo das “ideias no olhar”. A direção estabelece espaço de sonho que busca ser ouvido, e essa audição se torna mais audível à medida da força corporal do que é dito. Luciana Fróes e Nadia Nardini se fazem dupla de voz e corpo sem nenhuma intenção ilustrativa. São movimentos sutis, gestos interrompidos, mãos suaves, toques inconclusos e quedas deslizantes que reverberam vozes que cantam, expõem conflitos, medem temperaturas, e despem ridículos. As atrizes nos transportam para o lugar do teatro como possibilidade de convivência e dúvidas. Para o encontro dos desencontros.         

sábado, 9 de maio de 2015

Temporada 2015

Crítica do Segundo Caderno de  O Globo (8/5/2015)

Crítica/ Eugênia
Palavras espalhadas por tempos históricos
O monólogo de Miriam Halfim recria um jogo de tempo (“estou morta e estou ótima”) na história de personagem secundário na vida de Dom João VI. Amante do imperador português, com quem teve uma filha, Eugênia de José Menezes é levada, pela necessidade de se manter como figura afastada do monarca e a subsistir a experiências que confrontam épocas. Ao ressuscitá-la, já que sai de sua caixa-túmulo para percorrer memórias póstumas, a autora mistura pesquisa histórica com traços de humor. Apesar de mais organizado do que criativo, o monólogo permitiu ao diretor Sidnei Cruz condicionar a ação aos tempos narrativos, desdobrando palavras em movimentos, desprendendo-se da sequência expositiva. A partir da caixa-túmulo, no eficiente e inventivo desenho de José Dias, a personagem espalha pelo espaço outras tantas caixas, que trazem os acessórios de sua viagem na vida e a bagagem que reveste seu delirante percurso. Tal como cubos-mágicos de faces em cores diferentes, a montagem estende a de cada passo, tonalidades diversas de uma dança ativa que ecoa a voz única em múltiplas sonoridades. A fixidez da narração, que ameaça com a monotonia o desenrolar das cenas, é quebrada com a movimentação contínua da atriz, na intensa preparação corporal de Morena Cattoni e na manipulação dos figurinos e adereços e  maquiagem de Samuel Abranches. Os gestos surgem da própria linha interpretativa e estão integrados à atuação como balé farsesco e atos de bufonaria com que Eugênia veste e despe o colorido figurino. A direção mantém a intensidade dos truques cênicos no limite de um show de variedades, brincando até mesmo com a capacidade da atriz em ingerir substancial volume de água. A iluminação de Aurélio Di Simoni e a música de Beto Lemos complementam a concepção geral. Gisela de Castro sustenta a solidão em cena com a disciplina de intérprete que se empenhou em corresponder às proposições do diretor. Com rosto expressivamente delineado, que acentua sua máscara facial, e com agilidade corporal,  que sustenta sem aparente esforço, Gisela não deixa que o ritmo sofra descontinuidade, mas fica restrita a seguir fisicamente trilha que poderia alcançar maior extensão.    

quarta-feira, 6 de maio de 2015

Temporada 2015

 Crítica do Segundo Caderno de O Globo (6/4/2015)

Crítica/ Anti-Nelson Rodrigues 
Novela de final quase feliz

Penúltima peça de Nelson Rodrigues, escrita seis anos antes de sua morte e por insistente encomenda da atriz Neila Tavares, Anti-Nelson Rodrigues é seu texto mais melodramático e ao qual atribuiu título na direção contrária ao ceticismo da maioria dos desfechos das suas tramas. Para além da irônica auto-referência e do romantismo de radionovela, que Nelson tanto gostava, a narrativa persegue as mesmas obsessões de outros personagens perdidos entre a moralidade das aparências e a impossibilidade da ética, a impureza dos desejos e a solidariedade na canalhice. Ainda se mantêm os diálogos de humor sentencioso e o drama de emoções arrebatadas, mas cansados pelo esforço repetitivo e declinantes na invenção. A integridade do universo rodriguiano se conserva como força expressiva e fixação dramatúrgica, mas com inspiração rarefeita e desenvolvimento arfante. Osvaldinho, o boa-vida protegido por incestuosa maternidade e rejeitada paternidade, decide, por capricho, ter uma noite com a recatada suburbana, protegida pelo pai botafoguense. As muitas observações do autor, infiltradas em frases um tanto preconceituosas, acabam por se restringirem ao efeito da impertinência. Bruce Gomlevsky demonstra hesitação ao definir a linha da montagem. Com cenário reduzido a piano, cadeira, cama e praticável, que aproxima a ação da plateia, as cenas se desvendam, em reveladora intimidade, deixando expostos os mecanismos frágeis da sua construção em quadros. O diretor usa essa cenografia despida de imagens para preencher as palavras fartamente vestidas de Nelson Rodrigues com interpretação exaltada da maioria do elenco. Não há semitons, possíveis mesmo numa linha demarcada pelo melodrama, muito menos continuidade nas atuações exacerbadas. Oscila-se do comentário crítico aos personagens à busca de tradução cênica para um gênero em si já muito carregado de conotações. As possibilidades de harmonização entre os dois polos se transformam em paralelismo e entrechoque, reiterando formalmente o avanço aos soluços da narrativa. Tonico Pereira incorpora  Salim Simão em alta voltagem. Rogério Freitas, em que pese o seu despudor, só atinge com sua eloquência discursiva, contornos mornos como o pai. Gustavo Damasceno torna retraída a pusilanimidade de Leleco. Carla Cristina mantém-se discreta em relação ao tratamento subalterno imposto pelo autor à empregada doméstica. Juliana Teixeira desenha a mãe com gestual rígido e intensidade desordenada. Yasmin Gomlevsky elimina com contenção artificial, a mobilidade dos sentimentos no caminho da jovem até a sua decisão final. Joaquim Lopes é um Osvaldino maneirista.