quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Temporada 2015

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (7/1/2014)

Crítica/  Selfie

Bufões da pantomima da era digital
A comédia de Daniela Ocampo sobre os costumes da vida digital é composta quase como esquetes, a partir dos quais constrói narrativa que se equilibra nas divertidas observações da autora. A perda de todos os dados pessoais e informações armazenadas no celular provoca o colapso na vida de Claudio, que tem rompida as suas relações com aqueles que o cercam e a identidade destruída pela abstinência virtual. Ao implantar um chip no cérebro que armazena múltiplas plataformas digitais, cria sistema próprio de acesso, adquirindo extraordinária inteligência e rapidez na manipulação de dados. A necessidade de se apoiar numa trama com contornos cibernéticos é justificada por Ocampo como forma de contrapor os absurdos de universos cada vez mais contraditórios. A conexão universalizada pelos aplicativos e o artesanato da convivência real se distanciam numa velocidade planetária, diluindo em nuvens de desconhecidos a memória verdadeira. Mas esse entrecho, que se desvia para o humor mais direto e crítico ao capturar comportamentos, não deixa de insinuar alguma ingenuidade com seu lirismo reforçado pelas imagens do menino e na empinagem de pipas. A estrutura de esquetes, que evolui com a série de atitudes geradas pela convívio com smartphones, tablets, e a autoimagem dos selfies, registra desde a inadequação tecnológica dos mais velhos à incontornável ligação generalizada com o mundo virtual. Marcos Caruso imprime dinâmica às cenas, capaz de manter o ritmo em velocidade de cruzeiro, a salvo de qualquer turbulência ou ameaça de queda nos dois atos. Sem praticamente cenário, com a iluminação de Felipe Lourenço como uma coautoria na direção e a evidente e criteriosa preparação corporal de Arlindo Teixeira, Selfie é uma montagem bem realizada, com a pretensão de ser apenas um divertimento com humor e nenhuma concessão às facilidades do riso induzido. A dupla de atores por suas inteligentes interpretações e movimentação performativa é responsável pela maior qualidade desta comédia bem escrita. Com a voz e o corpo como elementos absolutos para compor a atuação, Mateus Solano e Miguel Thiré se desdobram como sonoplastas, ambientando sonoramente gestos que figuram a expressão delirante da vida contemporânea presa ao backup. Os dois atores se complementam, tanto ao emitir sons que reproduzem aparelhos, quanto ao projetar objetos e reações através da mímica. Feito uma dupla clássica de cômicos nesta pantomima da era cibernética, Solano e Thiré atualizam, como bufões da atualidade, o espanto pelo convívio com as novidades vertiginosas.