quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Temporada 2014

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (12/11/2014)

Crítica/ Rei Lear 
O trágico enquadrado no drama

A tragédia de Shakespeare se transforma em drama e a forma narrativa em monólogo, numa transposição em que a ação se desidrata e a duração se condensa. Rei Lear, na adaptação de Geraldo Carneiro e interpretação de Juca de Oliveira, é entrevisto através dos vestígios deixados pela versão original, em que questões políticas e prerrogativas de poder são secundárias diante da relevância das relações familiares. O que prevalece é a traição de duas de suas filhas e a rejeição a única que lhe é fiel, depois do monarca, ainda em vida, repartir o reino entre elas. Não há subversão do texto shakespeariano, mas reducionismo e algumas mudanças impositivas que servem à conversa coloquial entre ator e plateia, que parece ser a intenção da montagem. Para tanto, introduz pequeno trecho de Hamlet em que o príncipe fala aos atores sobre a simplicidade do ato da representação, com que Juca inicia e define o modo como deseja que o espetáculo seja recebido. Em inusitada reversão, eliminam-se as mortes de Lear e Cordélia, passando ao largo da raiz trágica em improvável ramificação a um desfecho menos infeliz. Nesta reaproximação de Lear fica a dúvida sobre as reais pretensões ao encená-la, já que está distante do exercício de estilo ou do desejo de reiterar uma sólida e irrepreensível carreira. A direção de Elias Andreato é tão despojada quanto o palco nu, a iluminação simples e a trilha sonora discreta, insinuando visão ampliada de leitura dramatizada. A presença do ator, única e indissociável do formato, joga sobre o intérprete a carga de se multiplicar em tantos quantos os passos do personagem na sua trajetória da consciência à loucura. Andreato se mostra a serviço do temperamento dramático e da extensão de recursos do ator, deixando aparecer nos detalhes das marcas a sua intervenção silenciosa. Juca de Oliveira procura transmitir, sem solenidade, a caminhada um tanto aplainada do rei em direção a troca discutível de rumo do final. Com pequenas modulações vocais e sutil desenho corporal, Juca se desdobra, sem ênfases e gestual expandido, em um arco de personagens que oscila da autoridade humilhada de Lear a sugestão da feminilidade das filhas, sobrevoando a argúcia do Bobo. É um desafio avançar, e não tropeçar, pelos 60 minutos aos quais está reduzida a longa tragédia, aparada, contraída e sufocada na ação, e ainda assim, estabelecer diálogo direto com a plateia. Nem sempre é possível, com essas restritivas coordenadas, colorir a atuação e fugir das distinções que a passagem rápida de um personagem a outro exige. Juca de Oliveira, pela experiência e a maturidade, conduz sua performance com ritmo e pulso, ainda que pague tributo à solidão do monólogo e ao enquadramento do trágico ao drama.