quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Temporada 2014

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (8/10/2014)

Crítica/ Blackbird
Zona nebulosa em torno do choque etário
Baseado em fato real, o texto do britânico David Harrower recria dramaticamente relação entre um homem de 30 anos e uma garota de 12 com escrita metódica, respeitando cânones realistas e seguindo preceitos técnicos de playwriting. Acrescente-se conflito subjetivo, desvendado em pequenas doses e desenvolvido com a eficácia de costura bem alinhavada para o reencontro do casal, décadas depois, ao medir a extensão interior que a vivência do passado provocou em cada um deles. À sombra da pedofilia e das questões éticas e morais envolvidas no choque etário provocado pelo contato físico da menina e o adulto, irrompem as consequências de algo localizado em uma área misteriosa, alcançada apenas por palavras que capturam os efeitos, mas não os reais sentimentos. Harrower se movimenta nesta zona de contrastes em torno do ponto de fuga desfocado do horizonte do imponderável, de um lugar de incertezas e de vazio a ser preenchido por dúvidas permanentes. Como um exemplar típico do realismo psicológico, Blackbird é sustentado por diálogo intenso, no qual as vozes se alternam em ritmo cronometrado por pausas e clímaces que conduzem a esse espaço incompleto de juízos fluídos. A direção de Bruce Gomlevsky explora a invisibilidade do que não se constata e o ruído para além do que se silencia, revestindo a ação de tantas encruzilhadas que tornam o percurso narrativo um quebra-cabeça de peças soltas, sem encaixes, desconexas, como nas atitudes que não se explicam. O tratamento de Gomlevsky, seco, pouco expansivo e equilibrado entre o dito e o expositivo, retira, sem trair, a eventual contundência que a trama pretenderia provocar, valorizando a situação-base como mote em que os seus desdobramentos esvaziam os aspectos conclusivos em favor da alternância identitária dos papéis. O naturalismo de um depósito semi-abandonado da cenografia de Pati Faedo ganha maior projeção com o enquadramento retangular que delimita a área do palco, desenhando quase uma tela que condensa em um close visual o corte incisivo das emoções. A trilha original de Marcelo Alonso Neves tem o mérito de marcar alguns momentos, desviando-se de ênfases sonoras e efusões dramáticas. A iluminação de Elisa Tandeta é pontualmente discreta, assim como o figurino de Ticiana Passos. O trio de atores demonstra correção e contida dosagem nas variações e no ritmo, mas não ultrapassa os limites da boa execução e criteriosa abordagem. Yashar Zambuzzi oscila de modo pendular entre fixar a memória dúbia e a concretude das emoções desconcertantes do homem que viveu a relação interdita e que foi condenado socialmente. Viviani Rayes investe com empenho na agora mulher que revive o que talvez possa ter sido expressão de desejos mútuos. Lorena Comparato, numa intervenção casual, mas decisiva, acrescenta maior nebulosidade ao denso território dos sentimentos à espera de catalogação.