segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Festivais


Mirada/ Santos
Amarillo: México
Pela segunda vez aconteceu o Mirada – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas do Sesc Santos que durante dez dias reuniu espetáculos de 14 países com ênfase na produção mexicana, trazendo aos teatros da cidade litorânea paulista oito diferentes grupos. Além dos brasileiros, Galpão mineiro, XIX paulista, Companhia Brasileira de Teatro curitibano, e a Cia dos Atores e Amok cariocas, vieram a Santos encenações de países que dificilmente se apresentam no Brasil, como Bolívia, Paraguai, Peru, e tantos outros, que apenas eventualmente aparecem por aqui em festivais, como Colômbia, Espanha, Chile, Uruguai e Portugal. O corpo de curadores propõe extensa abrangência geográfica dentro desta idéia de iberoamericanidade, ponto de convergência de estéticas cênicas, ora voltadas para seu ambiente cultural, ora com pretensões de integrar correntes internacionais. O conselho de curadores admite “não haver um eixo conceitual que determine aprioristicamente uma determinada preocupação ou aponte um percurso específico de pensamento na composição do programa. Sua elaboração leva em conta a diversidade de tendências e estilos e procura abrir espaço tanto para novos nomes e companhias ditas experimentais como para artistas consagrados e com trajetórias sólidas, favorecendo o diálogo entre a tradição e a inovação.” Como país homenageado, o México enfatizou um dos aspectos mais intensos da vida dos que abandonam o país à procura de melhores perspectivas fora de suas fronteiras. A emigração é tema de pelo menos três espetáculos que tratam, direta e indiretamente, do assunto. O de maior destaque e de melhor repercussão na mostra é Amarillo do Teatro Línea de Sombra, performance-instalacão-dramática em enquadramento sócio-político. O impacto visual já se revela ao entrar na sala, quando a platéia se defronta com enorme painel-muro branco. O palco despido, com as coxias visíveis, vai sendo ocupado por gestos mecânicos dos atores, galões de água distribuidos plasticamente no espaço e dezenas de sacos de areia, com o painel de fundo agigantando-se na sua impenetrabilidade opressiva.  Amarillo, a cidade texana, ponto de atração para os imigrantes ilegais mexicanos, não é somente alvo de esperança de uma melhor sobrevivência, mas desespero diante de impossibilidades. O imigrante se descobre alguém que não existe. A falência das origens obscurece as perspectivas de futuras afirmações identitárias. O apagamento do que se deixa na partida continua na duvidosa e improvável chegada. O que poderia ser um teatro político raivoso e sectário, se torna instalação cênica que usa meios expressivos sofisticados, através dos quais, o desaparecimento do humano por razões políticas ganha discurso intermediado por sensível recriação do real. Pulsante, Amarillo dá dimensão contemporânea ao intervencionismo do teatro político, revigorando-o. Há possibilidade de próxima temporada de Amarillo em São Paulo, e somente em São Paulo.
Os Assassinos: México
Também com viéis fortemente politizante, Os Assassinos reflete a violência disseminada na sociedade mexicana, vista como narrativa absurda. Com visível influência da dramaturgia de Samuel Beckett, que se dilui em humor crítico a costumes e a imagens populares, utiliza-se dos impasses sociais para desvendar mecanismos violentos de estímulo a morte e a alienação da nacionalidade. Os recursos cênicos do autor e diretor são múltiplos e dispersantes, no loquaz espetáculo em que ao levantar questões sobre a evasão pela irrealidade de falsos conceitos, se esvaziam as suas pretensões iniciais. A sensação é de uma montagem para cuja recepção é necessário conhecer a ambientação social e cultural que a envolve. De outro modo, e a julgá-la apenas teatralmente, se parece a seleta de tendências que, apesar de algumas boas influências, não se realiza como unidade estilística. Mais do que equidistante do público brasileiro, Os Assassinos é um espetáculo árduo de se assistir. Suspeita-se que até mesmo para o público mexicano.
Em outro registro, menos pesado e carregado de intencionalidades reflexivas, O Dragão Dourado acompanha em torno de um balcão de restaurante chinês, grupo de empregados que se esfalfa para atender a clientela. Para uma das empregadas, imigrante que deixou a China e na volta, de maneira cruelmente poética à terra dos pais, ilustra o caminho do retorno através das pequenas histórias dos clients frequentes do restaurante. Com agilidade em cenas de simultaneidade nervosa, a montagem atrai pelo humor arrebatado e dramaticidade velada, em equilíbrio bem dosado.
Chaikka: Uruguai    
Do Uruguai, adaptação de A Gaivota, de Tchecov, confirma a infinita atração que esse texto extraordinário exerce sobre a cena contemporânea. Para montá-lo na atualidade e nas várias latitudes culturais, procura-se cercá-lo de invólucros que o renovem ou o lancem a novas correntes e métodos. Nem sempre tais formatos resultam em espetáculos revigoradores ou que se sustentem com adereços inúteis e desviantes. No caso de Chaika, título que a Complot Cia de Artes Escénicas Contemporáneas de Montevidéu deu à sua versão de A Gaivota, a leitura da dramaturga e diretora Mariana Percovith parece se ajustar mais às características do grupo, do que propriamente intervir com radicalidade no texto. Ambientada na arquitetura do teatro, com a ocupação de seus vários espaços, a companhia se distribui pela plateia, na maioria do tempo, e pelo palco, raramente, e em que o abrir e fechar da cortina determina tempos dramáticos. Se a princípio a adaptação tem dificuldade em estabelecer com menos obviedade os parâmetros do jogo, ao longo da montagem vai se encorpando, e habilmente ressalta os melhores e menores desvãos deste definitivo debruçar de Tchecov sobre vidas conduzidas pela sua representação.
A Colômbia apresentou através da companhia La Maldita Vanidad, grupo com apenas três anos de formação, mas que circula deste o ano passado por festivais europeus e da América  Sul, trilogia hiper-realista, reunindo O Autor Intelectual, Os Autores Materiais e Como Quer Que Queira. Cada um se volta para aspecto da realidade colombiana. O Autor Intelectual traça quadro bem explícito de crime praticado por três rapazes contra o senhorio e que se desdobra quando a diarista chega para o trabalho. Os Autores Materiais se debruça sobre o destino de mãe idosa diante da omissão dos filhos. E em Como Quer Que Queira, os preparativos de festa de debutantes não obscurecem os movimentos mais ameaçadores em torno da celebração. De realismo levado aos limites da concretude cênica (cenário detalhado, alimentos preparados no palco, interpretação que persegue o naturalismo), os colombianos expõem fraturas sociais com meios próprios da fotografia narrativa.
Hamlet dos Andes: Bolívia
Vindo da cidade de Sucre, o Teatro de los Andes mostrou Hamlet dos Andes, que já pelo título determina o alcance e a intenção de aclimatar a tragédia de Shakespeare aos altiplanos bolivianos. Com trechos em quechua, uso de água, caricatura de lutas livres e um certo experimentalismo datado, esse Hamlet se assemelha, tanto quanto possível a uma tragicomédia regional, quase uma curiosidade. O grupo, que existe há mais de duas décadas numa cidade boliviana do interior, mantém vínculo com a sua geografia cultural, inventando diálogo em que o que é produzido possa chegar a plateia, estabelecendo linguagem comum.  Pela amostra desta encenação e pela permanência do grupo por tanto tempo é de se acreditar que essa ponte tem se mantido com boa circulação em ambas as mãos.
O Nacional: Espanha
Da Espanha e sob a égide da tradicional Els Joglars, O Nacional marca a  despedida do diretor e ator Albert Boadella, que por 51 anos esteve à frente da companhia, como um depoimento-desabafo. Ainda que a montagem já tenha alguns anos, O Nacional é um testamento-panfleto de Boadella em relação ao estado da cultura na Espanha e, secundariamente, sobre  a crise econômica que assola o país. Ao abrigar indigentes no prédio arruinado da Ópera Nacional, um velho indicador de lugares do teatro decide encenar com essa trupe de desvalidos a ópera Rigoletto. A ilusão que o teatro propicia é levada ao paroxismo de transformar essa horda em metáfora da liberdade da arte. Saltimbancos de pantomina imprecativa (Boadella vocifera contra secretarias de cultura, intelectuais, prêmios, comissões, verbas), os atores demonstram sólida técnica, numa montagem de longa duração (duas horas para repetidas e recorrentes situações). Com cenas de beleza plástica, com final de efeito cenográfico atraente, O Nacional se alimenta do que o passado do grupo criou na sua longa carreira para reviver-se num presente um tanto sombrio e desesperançado.
Do Peru, o grupo Cultural Yuyacachkani volta ao tempo de um teatro político anacrônico em Sem Título, Técnica Mista, em que conjuga exposição, ou seria instalação, para usar terminologia mais contemporânea, mesmo que em desacordo com as bases de tão envelhecido espetáculo, com cenas que remontam ao realismo socialista soviético. Quadros vivos que refletem mais ação política do que efetivamente teatral, a técnica antes de se denominar de mista, deve ser chamada de única. À entrada da sala, o espectador se defronta com textos e vitrines que expõem a história peruana do ponto de vista das guerras que marcaram o país, da população indígena, registrando comentários sobre ocupações recentes da presidência do país. Os atores, estáticos como manequins, compõem a moldura. Ao se movimentar para dar vida às várias menções estampadas na exposição, o elenco é conduzido em carrinhos, acompanhados pela plateia que, de pé mais por mais de uma hora, é submetida ao percurso pelas diversas etapas desse ingênuo agip-prop.      
                                 
                                   macksenr@gmail.com