segunda-feira, 24 de setembro de 2012

33ª Semana da Temporada 2012


Crítica/ Cara de Cavalo
Confronto entre a arte e a violência
O nome do personagem que dá título ao espetáculo em cartaz na Arena do Espaço Sesc é o de bandido que na década de 60 matou policial de grupo de extermínio, denominado Homens de Ouro. Marginal que vivia da exploração de mulheres e do jogo do bicho, abrigado na extinta favela do Esqueleto (onde onde funciona o campus da Uerj, no Maracanã), a história de Cara de Cavalo se reconstitui por Pedro Kosovski, através do policial remanescente da sua captura e morte. A investida de Kosovski esbarra em algumas dificuldades de integrar questões da arte com a realidade da violência e de estabelecer forma narrativa que documente e abrigue a vontade de depor sobre a expressão artística contemporânea. A dramaturgia para tal interrelação acumula diversos planos (tragédia carioca rodriguiana, linguagem da cultura pop) e fragmentos estéticos (referências plásticas, exibição de vídeos, música interveniente), levando à desmontagem dos tempos e da linearidade sequencial. Cara de Cavalo, o personagem, é pretexto para se falar das possibilidades da arte numa época de diluições e incertezas, de identificações plurais dos meios. Pedro Kosovski carrega tantas e tão variadas dúvidas, lançando-as de maneira algo anárquica, utilizando recursos da ambientação cultural e geracional envolventes, relacionando o que deseja dizer com a demonstração de como é difícil fazê-lo. É neste jogo, que Cara de Cavalo se constrói como teatro, e que o diretor Marcos André Nunes traduz no palco com igual espírito pulsante e desestruturante proposto pelo texto. Mesmo que o vídeo com o depoimento do policial e a consequente entrevista com a jovem repórter possam deixar a impressão de desabafo tortuoso, a tradução cênica do diálogo entre a obra de Hélio Oiticia e a marginalidade como arte é um belo momento. O elenco, com diferentes níveis de amadurecimento, tem em Saulo Rodrigues e Oscar Saraiva maior domínio de suas atuações, enquanto entre os de menor experiência, como Remo Trajano, Raquel Villar e Álvaro Diniz, o destaque é de Carolina Chalita que empresta tensão à amante de Cara de Cavalo. Ricardo Kosovski, como o policial entrevistado, dosa a intensidade agressiva do personagem com as contradições que precisa revelar em meio a seus confllitos internos. O ator se equilibra com extrema sensibilidade entre esses extremos, desenhando interpretação emocionalmente depurada.        
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CríticaPinteresco
O difícil humor que aparece nas entrelinhas
A dramaturgia de Harold Pinter tem a sutieza da entrelinha, daquilo que se revela pelo que aparentemente esconde. O que é dito parece adquirir os significados que se lhe emprestam diferentes interpretações. O realismo ganha contornos de naturalismo absurdo e diálogos delirantes, absolutamente corriqueiros em sua banalidade verdadeira, desconsertam pelo verismo. Pinter não revela, dissimula. Não mente, apresenta. Não expõe, entreolha. Pinteresco, em cartaz no Solar de Botafogo, é uma seleta de sua dramaturgia de espelhos invertidos em pequenas refrações. Em doze textos curtos, cortinas de sua obra dramática,  permite que se debruce sobre Pinter em outro plano formal. Lá estão os mais característicos elementos de sua dramática, num painel fracionado em historietas, ora cômicas, ora picarescas, difusamente políticas ou satiricamente britânicas, mas coerentemente pinterescas. São flagrantes de um universo que captura, como peças soltas de quadro mais amplo, pequenos pedaços de visão perversamente lúcida. A maioria – Ponto de Ônibus, O Último a Sair, Só Isso e Afora Isso – é uma aragem que somente balança as tempestades maiores das peças mais ambiciosos de Pinte. Há em algumas deles apenas a dimensão de uma vinheta, como em Só Isso, em que a contundência do dramaturgo se realiza em poucos minutos. A condensação de perspectiva de mundo nesses esquetes, exteriormente despretensiosos, demonstra segurança e certeza do autor em relação à sua criação. A transposição, seja na tradução de Jacqueline Laurence e Ísio Ghelman, seja na direção de Ary Coslov, procura trazer o universo de Pinter para plateia, cultural e geograficamente, distante. A montagem consegue aproximar essa dramaturgia em fatias da unidade textual de Pinter, mas somente parcialmente. Difícil de verter para nosso humor mais direto e menos construído, os esquetes são filtrados e aclimitados à nossa espontaneidade para o riso. Os doze, não importa suas peculiaridades e meios tons, recebem o mesmo tratamento, como se as sutilezas das entrelinhas (e o humor pode estar, exatamente, nessa área intermédia) devessem ser explicitadas. Uma das brincadeiras de Coslov é a extensão das pausas, uma das mais evidentes marcas do teatro de Pinter, a que o diretor recorre sem parcimônia. No estilo interpretativo do elenco, o diretor não domestica o temperamento exuberante do ator brasileiro, e deixa, de certo modo, que solte a sua tendência ao histrionismo. Não que os atores estejam deslocados, apenas estilizam linha de atuação em sentido contrário ao humor das cenas curtas. Savio Moll com pequenas modulações entre os tipos que interpreta, ressalta com discreta presença cômica alguns detalhes. Leonardo Franco intenta dar conotação mais british a algumas de suas intervenções, às vezes com habilidade, outras com menos resultado. Marina Vianna ultrapassa a marca da contenção, levando um pouco mais adiante os traços das personagens que interpreta. Alice Borges, uma comediante de máscara e gestos elásticos, exerce suas qualidades de modo generoso, com dois quadros em que se destaca pela compreensão que empresta a figuras entre o melancólico cotidiano da solidão e o patético do riso sem saída. Ainda assim, a atriz não escapa da intensidade da comicidade nacional.          

Crítica/ A Moringa Quebrada
Da Alemanha,  com escalas, para o Nordeste
Os clássicos, como este alemão dos 1800 em cartaz na Sala Paulo Pontes do Theatro Net Rio, não devem ser vistos pelo teatro contemporâneo como relíquias a preservar, a fixar como intocáveis. O clássico é assim denominado pelo que permanece como matriz, infensa a variantes temporais ou a reavaliações de ocasião. A Moringa Quebrada é clássica, não só por se enquadrar nessas categorias, como por seu autor, Heinrich von Kleist, ser um dos representantes mais expressivos de movimentos literários da Alemanha de sua época, e atento observador da dramaturgia mundial. Neste texto, Kleist mostra o jogo mentiroso das ações e instituições humanas, sob a descrença e hipocrisia que as comandam. Nesta comédia, em que não há heróis, muito menos complascência com as falcatruas das atitudes dissimuladoras, a trama se desenvolve, na melhor tradição de Molière, como pantomima de malandragens. Ao modo germânico, evidentemente. Na adaptação e direção de Gustavo Paso, muito do que o original conserva como classicismo se perde em inadequada transposição nordestina, rascunhada pela metade e sem qualquer preocupação em manter o espírito da raíz. A versão se reduz, basicamente, à ação como tal, e ainda assim, enfraquecida, não só pela diluição dos diálogos, indissociáveis do cerne da trama, como também pela postiça e incompleta regionalização. O diretor procura, coerente com o adaptador, tornar mais leve a montagem, marcando o elenco num registro de comicidade pouco elaborada, sugerindo gestual e vozes acentuadamente carregadas de humor explícito. A ambientação terrosa e os figurinos fora de tempo e de lugar acrescentam ao desencontro geral com seu eixo expressivo, mais esses dois desacertos. O elenco, com dois atores mais experientes (Claudio Tovar e Samir Murad) e os demais com visível inexperiência, executa seus papéis na medida de suas limitadas possibilidades.               

Crítica/ Véspera
Comédia familiar fora de esquadro
Camila Appel, autora desta tragicomédia em cartaz no Teatro Maison de France, parece ter escrito seu texto sem saber a razão para se lançar a tal empreitada, e sem encontrar rumo para desconexa trama. Há tantas investidas, vagas já de início, que os seus desdobramentos em situações indefinidas, confusas, dispersas, nulas, deixam pouca margem de reação, a não ser de indiferença, diante dos 60 minutos de tantas platitudes. A narrativa, que confina família à sua casa, na véspera do Natal, quando a falta de luz isola cada um na sua própria esquizofrênica convivência, não conduz os personagens a lugar algum. Appel, aparentemente, imaginou ter escrito peça de absurdo, ou então comédia familiar de contornos levemente trágicos. São, pelo menos estas as indicações que se pode inferir do acúmulo de personagens caricaturais e suas obsessões vazias, das ações rocambolescas que se assemelham às das novelas baratas e de tipos que irrompem na cena sem que se saiba por que, exatamente, vieram, e muito menos por que sairam. Nesta Véspera, tudo parece fora de esquadro. O cenário de Márcio Vinicius, com a cortina transparente que se interpõe à plateia, é dos equívocos visuais o mais evidente. A direção de Hudson Senna embarca nos atropelos do texto, criando  encenação atabalhoada sem qualquer marca autoral. Do elenco – Cris Nicolotti, Tadeu Di Pyetro, Juçara Morais, Silvia Lourenço e Rafael Maia – fica a sensação de que se empenhou sem muita convição.       

Crítica/ Eu Era Tudo Pra Ela E Ela Me Deixou
Piadas em direção ao público cativo
Esse show-comédia em que o ator Marcelo Médici interpreta nove tipos e que as mudanças de figurino são tão rápidas que se tornam integrantes do humor do espetáculo, vive desses efeitos das variações. O público que vai ao Teatro das Artes está à espera de rir da sucessão de figuras e gargalhar de piadas que o ator em travesti ou como o indefectível bêbado se esforça para compor. Há um texto, assinado por Emilio Boechat, que resulta em extensa narrativa para amarrar e disfarçar o aspecto de show de humor. Eu Era Tudo Pra Ela e Ela Me Deixou é tão longa quanto o seu título e tão auto explicativa quanto aquilo que quer divulgar. Marcelo Médici é um comediante com recursos múltiplos, capaz de atender à expectativa de um público que já se tornou cativo de seu estilo. Para esse público, Médici oferece o espetáculo que dele esperam.   

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segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Festivais


Mirada/ Santos
Amarillo: México
Pela segunda vez aconteceu o Mirada – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas do Sesc Santos que durante dez dias reuniu espetáculos de 14 países com ênfase na produção mexicana, trazendo aos teatros da cidade litorânea paulista oito diferentes grupos. Além dos brasileiros, Galpão mineiro, XIX paulista, Companhia Brasileira de Teatro curitibano, e a Cia dos Atores e Amok cariocas, vieram a Santos encenações de países que dificilmente se apresentam no Brasil, como Bolívia, Paraguai, Peru, e tantos outros, que apenas eventualmente aparecem por aqui em festivais, como Colômbia, Espanha, Chile, Uruguai e Portugal. O corpo de curadores propõe extensa abrangência geográfica dentro desta idéia de iberoamericanidade, ponto de convergência de estéticas cênicas, ora voltadas para seu ambiente cultural, ora com pretensões de integrar correntes internacionais. O conselho de curadores admite “não haver um eixo conceitual que determine aprioristicamente uma determinada preocupação ou aponte um percurso específico de pensamento na composição do programa. Sua elaboração leva em conta a diversidade de tendências e estilos e procura abrir espaço tanto para novos nomes e companhias ditas experimentais como para artistas consagrados e com trajetórias sólidas, favorecendo o diálogo entre a tradição e a inovação.” Como país homenageado, o México enfatizou um dos aspectos mais intensos da vida dos que abandonam o país à procura de melhores perspectivas fora de suas fronteiras. A emigração é tema de pelo menos três espetáculos que tratam, direta e indiretamente, do assunto. O de maior destaque e de melhor repercussão na mostra é Amarillo do Teatro Línea de Sombra, performance-instalacão-dramática em enquadramento sócio-político. O impacto visual já se revela ao entrar na sala, quando a platéia se defronta com enorme painel-muro branco. O palco despido, com as coxias visíveis, vai sendo ocupado por gestos mecânicos dos atores, galões de água distribuidos plasticamente no espaço e dezenas de sacos de areia, com o painel de fundo agigantando-se na sua impenetrabilidade opressiva.  Amarillo, a cidade texana, ponto de atração para os imigrantes ilegais mexicanos, não é somente alvo de esperança de uma melhor sobrevivência, mas desespero diante de impossibilidades. O imigrante se descobre alguém que não existe. A falência das origens obscurece as perspectivas de futuras afirmações identitárias. O apagamento do que se deixa na partida continua na duvidosa e improvável chegada. O que poderia ser um teatro político raivoso e sectário, se torna instalação cênica que usa meios expressivos sofisticados, através dos quais, o desaparecimento do humano por razões políticas ganha discurso intermediado por sensível recriação do real. Pulsante, Amarillo dá dimensão contemporânea ao intervencionismo do teatro político, revigorando-o. Há possibilidade de próxima temporada de Amarillo em São Paulo, e somente em São Paulo.
Os Assassinos: México
Também com viéis fortemente politizante, Os Assassinos reflete a violência disseminada na sociedade mexicana, vista como narrativa absurda. Com visível influência da dramaturgia de Samuel Beckett, que se dilui em humor crítico a costumes e a imagens populares, utiliza-se dos impasses sociais para desvendar mecanismos violentos de estímulo a morte e a alienação da nacionalidade. Os recursos cênicos do autor e diretor são múltiplos e dispersantes, no loquaz espetáculo em que ao levantar questões sobre a evasão pela irrealidade de falsos conceitos, se esvaziam as suas pretensões iniciais. A sensação é de uma montagem para cuja recepção é necessário conhecer a ambientação social e cultural que a envolve. De outro modo, e a julgá-la apenas teatralmente, se parece a seleta de tendências que, apesar de algumas boas influências, não se realiza como unidade estilística. Mais do que equidistante do público brasileiro, Os Assassinos é um espetáculo árduo de se assistir. Suspeita-se que até mesmo para o público mexicano.
Em outro registro, menos pesado e carregado de intencionalidades reflexivas, O Dragão Dourado acompanha em torno de um balcão de restaurante chinês, grupo de empregados que se esfalfa para atender a clientela. Para uma das empregadas, imigrante que deixou a China e na volta, de maneira cruelmente poética à terra dos pais, ilustra o caminho do retorno através das pequenas histórias dos clients frequentes do restaurante. Com agilidade em cenas de simultaneidade nervosa, a montagem atrai pelo humor arrebatado e dramaticidade velada, em equilíbrio bem dosado.
Chaikka: Uruguai    
Do Uruguai, adaptação de A Gaivota, de Tchecov, confirma a infinita atração que esse texto extraordinário exerce sobre a cena contemporânea. Para montá-lo na atualidade e nas várias latitudes culturais, procura-se cercá-lo de invólucros que o renovem ou o lancem a novas correntes e métodos. Nem sempre tais formatos resultam em espetáculos revigoradores ou que se sustentem com adereços inúteis e desviantes. No caso de Chaika, título que a Complot Cia de Artes Escénicas Contemporáneas de Montevidéu deu à sua versão de A Gaivota, a leitura da dramaturga e diretora Mariana Percovith parece se ajustar mais às características do grupo, do que propriamente intervir com radicalidade no texto. Ambientada na arquitetura do teatro, com a ocupação de seus vários espaços, a companhia se distribui pela plateia, na maioria do tempo, e pelo palco, raramente, e em que o abrir e fechar da cortina determina tempos dramáticos. Se a princípio a adaptação tem dificuldade em estabelecer com menos obviedade os parâmetros do jogo, ao longo da montagem vai se encorpando, e habilmente ressalta os melhores e menores desvãos deste definitivo debruçar de Tchecov sobre vidas conduzidas pela sua representação.
A Colômbia apresentou através da companhia La Maldita Vanidad, grupo com apenas três anos de formação, mas que circula deste o ano passado por festivais europeus e da América  Sul, trilogia hiper-realista, reunindo O Autor Intelectual, Os Autores Materiais e Como Quer Que Queira. Cada um se volta para aspecto da realidade colombiana. O Autor Intelectual traça quadro bem explícito de crime praticado por três rapazes contra o senhorio e que se desdobra quando a diarista chega para o trabalho. Os Autores Materiais se debruça sobre o destino de mãe idosa diante da omissão dos filhos. E em Como Quer Que Queira, os preparativos de festa de debutantes não obscurecem os movimentos mais ameaçadores em torno da celebração. De realismo levado aos limites da concretude cênica (cenário detalhado, alimentos preparados no palco, interpretação que persegue o naturalismo), os colombianos expõem fraturas sociais com meios próprios da fotografia narrativa.
Hamlet dos Andes: Bolívia
Vindo da cidade de Sucre, o Teatro de los Andes mostrou Hamlet dos Andes, que já pelo título determina o alcance e a intenção de aclimatar a tragédia de Shakespeare aos altiplanos bolivianos. Com trechos em quechua, uso de água, caricatura de lutas livres e um certo experimentalismo datado, esse Hamlet se assemelha, tanto quanto possível a uma tragicomédia regional, quase uma curiosidade. O grupo, que existe há mais de duas décadas numa cidade boliviana do interior, mantém vínculo com a sua geografia cultural, inventando diálogo em que o que é produzido possa chegar a plateia, estabelecendo linguagem comum.  Pela amostra desta encenação e pela permanência do grupo por tanto tempo é de se acreditar que essa ponte tem se mantido com boa circulação em ambas as mãos.
O Nacional: Espanha
Da Espanha e sob a égide da tradicional Els Joglars, O Nacional marca a  despedida do diretor e ator Albert Boadella, que por 51 anos esteve à frente da companhia, como um depoimento-desabafo. Ainda que a montagem já tenha alguns anos, O Nacional é um testamento-panfleto de Boadella em relação ao estado da cultura na Espanha e, secundariamente, sobre  a crise econômica que assola o país. Ao abrigar indigentes no prédio arruinado da Ópera Nacional, um velho indicador de lugares do teatro decide encenar com essa trupe de desvalidos a ópera Rigoletto. A ilusão que o teatro propicia é levada ao paroxismo de transformar essa horda em metáfora da liberdade da arte. Saltimbancos de pantomina imprecativa (Boadella vocifera contra secretarias de cultura, intelectuais, prêmios, comissões, verbas), os atores demonstram sólida técnica, numa montagem de longa duração (duas horas para repetidas e recorrentes situações). Com cenas de beleza plástica, com final de efeito cenográfico atraente, O Nacional se alimenta do que o passado do grupo criou na sua longa carreira para reviver-se num presente um tanto sombrio e desesperançado.
Do Peru, o grupo Cultural Yuyacachkani volta ao tempo de um teatro político anacrônico em Sem Título, Técnica Mista, em que conjuga exposição, ou seria instalação, para usar terminologia mais contemporânea, mesmo que em desacordo com as bases de tão envelhecido espetáculo, com cenas que remontam ao realismo socialista soviético. Quadros vivos que refletem mais ação política do que efetivamente teatral, a técnica antes de se denominar de mista, deve ser chamada de única. À entrada da sala, o espectador se defronta com textos e vitrines que expõem a história peruana do ponto de vista das guerras que marcaram o país, da população indígena, registrando comentários sobre ocupações recentes da presidência do país. Os atores, estáticos como manequins, compõem a moldura. Ao se movimentar para dar vida às várias menções estampadas na exposição, o elenco é conduzido em carrinhos, acompanhados pela plateia que, de pé mais por mais de uma hora, é submetida ao percurso pelas diversas etapas desse ingênuo agip-prop.      
                                 
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segunda-feira, 10 de setembro de 2012

32ª Semana da Temporada 2012


Crítica/ A Marca da Água
Mergulho na tortuosa mecânica do cérebro 
O texto conjunto de Maurício Arruda Mendonça e Paulo Moraes, que também assina a direção de A Marca da Água, em cena na Fundição Progresso, transita por áreas tão sutis como a memória, a solidão compartilhada, o cérebro invadido pela doença, a procura da música interior e pelo “espetáculo do nada” do cotidiano. Mergulhados em tantos e tão delicados labirintos da existência, os autores constroem personagem, uma mulher que traz desde a infância problema neurológico, que reconstitui seu percurso de volta à origem, perseguindo a sonoridade aquosa que a acompanha desde sempre. O aparecimento de surrealista peixe no fluxo da vida do casal é somente a eclosão da viagem da mulher em torno de sentimentos, aparentemente delirantes, mas que determinam os rumos daquilo que sente e da apropriação
das peças soltas do puzzle do seu passado. A inevitabilidade da morte, que é comum a todo humano, na personagem é iminência. Sofrendo de crescente acúmulo de água no cérebro, não se submete a qualquer tratamento, substituindo-o pela imersão e fidelidade à musicalidade que enche a sua cabeça de sons vitais. O presente lhe parece vazio. O futuro é semelhante ao mundo, sem perspectivas. Resta o passado como tempo de resgate. A personagem recusa ajuda médica, já que não está à procura de cura, mas de reconstruir a doença como metáfora da própria vida. Os autores, aparentemente, se basearam em narrativa corrida, com linha sequencial que levasse o percurso até a um fim (o ressurgimento do pai náufrago). Esse tributo à coerência e ao acabamento, talvez tivesse restringido o adensamento poético que na montagem se traduz tão delicadamente com o elenco tocando acordeões, compondo o caminho da partitura da música interior. Apenas um detalhe secundário em texto que se corporifica pelo percurso, pelo mergulho no desequilíbrio para realizar o encontro, aproximar-se de algum sentido de plenitude. Paulo de Moraes regula a cena na mesma dimensão da escrita: poética, imagética e inconsciente. O diretor cria imagens que estão desenhadas como abstrações do real, fortes o bastante para impregná-las de significações evocativas, lançadas ao espectador como quadros em movimento. O ritmo que imprime a esses quadros é que estabelece a nervosidade da cena e o lirismo da ambientação. Como cenógrafo, Paulo de Moraes traça com geometrismo a área da representação - painel de quadriláteros e tanque retangular -, equilibrando a fisicalidade da água e a volatividade das projeções de Rico Vilarouca e Renato Vilarouca. Esse ambientação acondiciona com suas linhas retas a tortuosa mecânica do cérebro. O elenco acompanha com retilínea composição a racionalidade emocional do entrecho. Ricardo Martins, Marcos Martins, Marcelo Guerra e Lisa E. Fávero atuam como um coro harmônico de muitas vozes afinadas para que Patrícia Selonk detalhe o seu instigante solo. A atriz, sem dramatismos e exterioridades, mergulha no túnel de águas revoltas da personagem com rigor racional e fina emocionalidade. Demonstração da maturidade e inteligência da intérprete.       
   

Crítica/ A Gaivota
Longe de desvendar os mistérios de uma dramaturgia
Tchecov dizia que sua dramaturgia tinha humor. Mais do que uma boutade, o autor russo indicava com a afirmação que seu teatro não era feito de camada uniforme. Com várias e embutidas camadas, a cada encenação de suas peças, pode se descobrir rumos e outros atalhos interpretativos. Nada em Tchecov aponta para o unívoco, para um só caminho. Há comédia, drama, e se quisermos até melodrama, mas o que sobressai de todas os indícios estilísticos é o impenetrável mistério da existência, e é dele que se está sempre perseguindo a cada encenação. A versão de Bruno Siniscalchi, em cartaz no Teatro Gláucio Gill, prossegue, a seu modo, no desvendamento dos meandros do mistério tchecoviano. Fica distante de tocar no mundo incompleto dos personagens, nos silêncios aos quais se pode atribuir tantos ruídos e no vazio dos gestos e no ardor das palavras. A perspectiva do diretor é a de sintetizar, eliminar o embate, a interioridade, fracionar para reduzir e facilitar, se interpor ao entrecho. Na tábula rasa a que se reduz a encenação de Siniscalchi, abandonam-se vestígios de substrato e intenções de estabelecer atmosfera. A idéia, se há alguma mais consistente, desvia-se para outra direção, não exatamente para alguma opção palpável, perceptível para além do arbítrio, o que somente subtrai, esvazia e empobrece. A ocupação cenográfica da totalidade do palco e de parte da platéia com centenas de girassóis, se provoca impacto inicial, se esvai pelo esgotamento  monótono da visualidade e pelo pouco aproveitamento da iluminação. E se todo esse desacerto não bastasse, o diretor conduz o elenco de forma inexpressiva e descaracterizante. Se a princípio, imagina-se que alguns atores seguem um naturalismo hesitante, em seguida percebe-se que cada um parece decidir o que e como interpretar seus personagens. Julia Lund empresta uma certa mutabilidade a Nina, o que Carla Ribas não consegue na padronização e rigidez de sua Arkádina. Karina Teles, ainda que timidamente, dá vida a Macha. Gabriel Pardal uniformiza, pela linearidade de sua atuação, o Trepliov. Thales Coutinho está muito distante de qualquer abordagem concreta de Miedviênko, e Ricardo Gonçalves contribui para a invisibilidade e o esfumaçamento da canalhice de Trigorin.    

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terça-feira, 4 de setembro de 2012

31ª Semana da Temporada 2012


Crítica/ Gozados
Amy Winehouse em versão ainda mais politicamente incorreta
O trocadilho e a sugestão do título apontam para  o tipo de humor deste show de comédia em cartaz no Teatro dos Quatro. Gozados é sequência de Subversões, que desde 1990 vem cativando platéias com versões nada reverentes de canções populares. A última temporada de Subversões aconteceu meses antes da estréia de Gozados, o que demonstra o poder de atração dessa brincadeira longeva. Em temporadas intermitentes, o original permaneceu em cena, conquistando públicos de gerações diferentes, formando cultores de suas letras-paródias de variadas músicas. Provavelmente é para atrair essa platéia seguidora que Luiz Salem, ator, e Stella Miranda, diretora, da primeira versão retomam a mesma trilha, agora com ambos no palco, na tentativa de repetir a fórmula. Se a intenção terá sido esta, talvez consigam sucesso pela fidelidade, ainda que, por precaução, apresentem um número retirado de  Subversões. Mas se, ao contrário, a dupla pretendeu ampliar a brincadeira, Gozados perde na comparação, em vigor e espírito, já que músicas e esquetes pesam na excessiva insistência em ambuiguidades sexuais e no linguajar vulgar. Quadros longos e pouco comunicativos, como os dos musicais e da cantora Amy Winehouse, desequilibram e quebram a voltagem do humor, que se mostra bem mais interessante quando recorre à crítica mais depurada e a citações oportunas ao politicamente correto. Quando esse cacoete hipócrita da vida social é exposto em seu ridículo, Gozados ganha outra embocadura na comicidade. Luiz Salem, bem mais à vontade e com inteiro domínio da cena, tem participação solta e identificada com o material cômico. Stella Miranda está mais contida e menos próxima ao estilo do humor que interpreta .    

Crítica/ O Filho da Mãe
Diálogo entre mãe e filho travestido em lugar comum 
Regiana Antonini mantém o registro de comediógrafa em O Filho da Mãe,  cartaz no Teatro Vanucci, confirmando pelo humor o desejo de exaltar a maternidade como vocação feminina incondicional. A mulher que é abandonada pelo marido transfere frustrações, ciúmes e desejos reprimidos ao amor maternal. A convivência de mãe e filho, do início da adolescência até a idade adulta do garoto, que está de partida para o exterior, é exposta em tempos paralelos que se misturam para apresentar o painel doméstico do relacionamento. A autora nem sempre domina a técnica de flashback, e sua complacência para com a comicidade fácil faz com que os diálogos, alguns até com observações bem sacadas, se percam no lugar-comum. Mãe e filho são tipos, não exatamente personagens, e estão, especialmente ela, a procura do riso como um fim em si mesmo. Os monólogos sobre a “nobreza” da maternidade ficam deslocados em meio a tantas piadas e reiteração da trama. O diretor e ator Eduardo Martini toma a si a  responsabilidade de encenar e atuar, tentando fugir à montagem original de há três anos. Em travesti interpreta a mãe em composição que traça o humor, exatamente pelo fato de ser um homem vivendo uma mulher. O ator não exagera ou apela, fica no limite das possibilidades de comicidade oferecida pelo texto. Bruno Lopes é o filho.

Crítica/ Na Sobremesa da Vida
Conversa de um ator sobre sua carreira 
Baseado no perfil de Emiliano Queiroz, publicado na Coleção Aplauso, o espetáculo que tem o mesmo título do livro e a mesma autora, Maria Letícia, está em cena no Teatro dos Quatro. Tanto livro quanto espetáculo revelam o desejo do ator de contar sua história no teatro, cinema e televisão como balanço profissional de 60 anos de atividades. Emiliano tem boas histórias a contar, desde o começo em Fortaleza até as pitorescas vivências como autor de novelas, a criação de Veludo em Navalha na Carne e da Geni na Ópera do Malandro. A montagem, assinada por Ernesto Piccolo, arruma com bastante modéstia a versão teatral do perfil escrito. Com a participação de Ivone Hoffmann, Antônio dos Santos e Ana Queiroz, coadjuvantes do personagem principal e único, a montagem é arrastada, artesanalmente pobre, que tem na vontade de Emiliano Queiroz compartilhar com o público uma trajetória de tantos anos. É dele o palco. 

Crítica/ Michael e Eu

Não basta ter uma idéia, ou se encantar por um desejo para fazer deles uma criação artística. Por mais que o autor desta sucessão de vídeos e de mal alinhavada costura de arremedo de trama se lance em temporada no Teatro do Leblon, as razões para encená-los, quaisquer que sejam, se mostram insuficientes para levantar tão banal empreendimento. Marcelo Pedreira baseou-se na história real de um fã fanático de Michael Jackson, colecionador de todo tipo de memorabilia sobre o cantor, capaz de atitudes cotidianas, ou ausência delas, que se regulam por esta idolatria. Para tanto, criou um psicanalista nada ortodoxo, um fanfarrão quase tão fora do ar quanto o paciente, este, o fã sem rumo, os dois, personagens-pretexto para exibição de cenas de shows de Michael Jackson. Não há nada que se assemelhe a um eixo dramatúrgico, muito menos a roteiro de show oportunista. A trama é tão pífia que pouco avança para além de descosturado arranjo cênico. O diretor Ivan Sugahara coordena com mão solta esse material inconsistente, com um único momento mais vivo, que pode ser considerado um golpe de teatro: a aparição da figura de Jackson. No mais, uma abertura ao som de Carmina Burana, imagens inexpressivas e atores rotineiros. Pedro Henrique Monteiro parece um fã sem paixão. Bruno Garcia, um psicanalista caricato.   

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