segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Festivais

Festival Internacional de Artes Cênicas da Bahia

À Procura de Arrebatar

De Salvador: Pólvora e Poesia
Pela quarta vez e com crescente amplitude, o Festival Internacional de Artes Cênicas da Bahia, o Fiac de Salvador, se consolida como uma mostra de contornos que se definem pela permanente inquietação. A  programação deste ano, tanto a nacional quanto a internacional, além da local, refletiram a vontade de estender e capturar, como um panorama de descobertas ”aquilo que arrebata na discussão da linguagem teatral”, como conceitua um dos curadores, Felipe de Assis. Essa intenção foi parcialmente alcançada em escolhas que abrangeram nas originais intervenções do argentino Daniel Veronese em texto de Tchecov (Espía a una Mujer que se Mata), na invenção do paranaense Márcio Abreu (Oxigênio), no frescor narrativo do carioca Felipe Rocha (Ninguém Falou que Seria Fácil e Ele Precisa Começar),e na renovada experiência do teatro de animação da companhia do Rio, a PeQuod (A Chegada de Lampião no Inferno). Numa refração desta diversidade de tendências, a presença de Domínio Público do espanhol Roger Bernart, com sua proposição de um jogo coletivo com a platéia, provocou reações bastante intensas no público participante. A produção baiana, vista no festival, reflete com alguma timidez os impulsos expressivos das montagens visitantes. Luz Negra, texto do salvadorenho Álvaro Menen Desleal, encenado pelo baiano Rino Carvalho, é como um pastiche de Samuel Beckett, já que os diálogos sobre finitudes são vividos por duas cabeças, separadas dos corpos e mergulhadas no solo, em imprecações contra sua condição terminal. Carvalho se utiliza de múltiplos recursos sonoplásticos, de imagens desérticas e de movimentos de um terceiro ator-bailarino, numa composição mimética de tantas outras referências a montagens beckettianas. Resta pouco espaço para uma real avaliação para determinar o que de original o diretor projeta na cena. O que ressalta desse espetáculo em que texto e encenação são meras ressonâncias, é o som forte da atuação, entre rascante e melodiosa crueza, de Evelin Buchegger. Atriz de uma inteligência interpretativa que projeta com sintonia fina, Evelin Buchegger se impõe no palco como alguém que conhece e destila os seus melhores recursos numa montagem carregada demais de elementos dispensáveis. Em registro bem diverso, Pólvora e Poesia, a tumultuada relação de Paul Verlaine e Arthur Rimbaud, tão bem captada em seu vôo destrutivamente poético por Alcides Nogueira, ganha o palco assinada pelo diretor Fernando Guerreiro. De uma mesa como área de representação, ocupada pela fisicalidade dos atores e inflamada pela palavra fulgurante, emergem emoções pulsantes. Guerreiro provoca explosivo choque de temperamentos, acionando carga emocional, ao mesmo tempo contida e detonada, jogando seus estilhaços na platéia, que os recebem, ora como um sopro verbal, ora como um tiro provocativo. Montagem encorpada, repleta de  ardor criativo, mergulha com destemor na arquitetura de uma cena irrefutavelmente poética. Talis Castro como Rimbaud, e Caio Rodrigo como Paul Verlaine conduzem, vigorosamente, essa descida ao inferno interior de dois temperamentos exaltados pela paixão mútua. Recriam a liberdade vivida por aqueles que não têm caminhos, e são conduzidas por iluminações destemperadas, e que têm a consciência de que a  “vida é deslumbrantemente má”.

De Salvador; Bença 
Na perspectiva de uma outra poética, o diretor Márcio Meirelles foi em busca do passado da cultura afro-baiana para referenciá-la a um presente que se vai desfazendo. Bença, a mais recente montagem do Bando de Teatro Olodum, mantém a coerência estilística de seu repertório, ao transformar a cultura afro-brasileira em matéria dramática.  Em “Bença”, o elenco fixo do Bando faz reverência ao conhecimento dos mais velhos, ligados à religiosidade do candomblé, e à perda da sua influência na contemporaneidade. O formação do mundo e a existência humana  se constituem em unidade que, segundo os cânones da religiosidade de origem africana, é dada pela natureza. Hoje, quando essa natureza sofre com tantas mutilações e a vida está voltada para variados apelos exteriores, o tempo parece apenas contabilizar o imediatismo de sua passagem. É destas contradições e do esquecimento daquilo que nos foi legado de que trata esta encenação de Márcio Meirelles. O palco abriga um terreiro de candomblé, com os atores  vestidos de branco, tocando atabaques e instrumentos de celebração aos orixás, acólitos das entidades em cerimônia de exaltação. Não é fácil perceber todo o significado do cerimonial cênico, já que a linguagem religiosa tem códigos que nos são desconhecidos. O elenco evolui como num balé, capaz de criar formas harmoniosas entre o calor do terreiro e o rigor do palco. Sem folclore e com idéia dramatúrgica consistente, o Bando de Teatro Olodum faz depoimento sensível e, algumas vezes até contundente, sobre o tempo e o desgaste do seu mal uso.
Grand Théâtre Pão e Circo em que a atriz baiana Carolina Kahro assina  texto, direção, luz, cenografia e interpretação, não é, como parece a princípio, um projeto de excessiva exposição. É tão somente um trabalho concentrado de uma artista que deseja falar das mazelas que alimentam nosso mundo, util;izando várias técnicas expressivas. Numa concepção entre a bufonaria da atuação e o geometrismo do cenário, Carolina Kahro reflete sobre questões sociais, a intensidade de estímulos alienantes de uma certa mídia, e a  exposição realista de manifestaçòes da miséria. É muita coisa, sem dúvida, o que leva o monólogo a relativa dispersão, que supera essa limitação pelo domínio do seu arcabouço narrativo, que a atriz transmite com segurança, evidenciando a sua completa adesão ao seu espetáculo, sem torná-lo meramente personalista . 

De Porto Alegre: Dentro Fora
Num registro ascético, distantemente clownesco, Dentro Fora, do Rio Grande do Sul, é uma inesperada proposta, que demonstra acabamento e limpeza visual, sintonizados com a crueza do texto de Paul Auster. O casal, confinando em caixas, com seu discurso emocional esgotado pela semântica da aridez da perda das reais significações, dialoga com o mundo ao qual já não se inclui. De fora, que sabem não ser mais possível fazer parte, os mantém dentro, onde se pode, ao menos, representar, o que não mais existe no exterior. A encenação de Carlos Ramiro Fensterseifer é descarnada de drama, como pede o universo derrisório de Auster, mas preenchida por um colorido desbotado de contrastes frios. O vazio que existe de ambos os lados, se encontra numa cenografia em que dois aquários, muito bem iluminados pela sutileza das mudanças, que determinam variações de cor nos figurinos e na caracterização do casal de atores, se destacam como quadros vivos. O adensamento da cena, que não se deixa contaminar pelo formalismo estetizante, encontra em Liane Venturella e Nelson Diniz, um par que desempenha com rigor e depuramento esse sofisticado espetáculo de apenas 45 minutos.


De Buenos Aires: El Pasado es un Animal Grotesco
Depois de ter participado do festival Tempo, no Rio, há pouco mais de um mês, El Pasado es un Animal Grotesco, do argentino Mariano Pensotti, que também já foi visto em mostras européias, foi apresentado no Fiac com boa recepção. O percurso internacional é plenamente justificado pela intensidade com que flagrantes de pequenas individualidades, durante dez anos e numa Argentina convulsionada por crise política e econômica, são expostos em ciranda de humor trágico e volteios de solidões. Neste carrossel de histórias que se desenrolam num tempo que oferece pouco mais do que patéticas possibilidades de existência, Pensotti explora o grotesco e melancólico da aventura humana. Com atores tensionadas em alternância entre narradores e intérpretes, o animal de que fala o titulo vai se mostrando, em paralelo, ao acúmulo da passagem dos anos (de 1999 a 2009), embalados em caixas repletas dos despojos deixados pelo caminho.  
O grupo belga Tristero e Transquiquennal apresentou um, senão desconcertante, pelo menos divertido, espetáculo de humor-catastrófico, em que os espectadores são conduzidos a conviver, via projeções e legendas (não há texto ou estrutura verbal narrativa), com informações sobre os perigos de acidentes. O risco de se estar numa sala de espetáculos é demonstrado pelas estatísticas de incêndios. É quase o mesmo de estar na sua própria casa, e ter, como aconteceu na Bélgica, um avião caindo sobre a sua cama . Bem humorada, um humor belga, ou de Flandres, não se sabe muito bem, essa brincadeira  sobrevive até mesmo à nossa sensibilidade tão distante do que se supõe seja o risível para os espectadores da cidade sede da União Européia.  

                                                                macksenr@gmail.com

       

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

40ª Semana da Temporada 2011


Dois Estilos (Econômicos) de Musicais

Crítica/ A Aurora da Minha Vida – Um Musical Brasileiro
Evocações dos bons e cruéis tempos da escola
Naum Alves de Souza é um autor dos anos 80. Foi nesta década do século passado que o dramaturgo paulista produziu a maioria de sua obra. Além de A Aurora da Minha Vida, que agora ganha o aposto de Um Musical Brasileiro e pode ser visto no Teatro Sesc Ginástico, Naum escreveu, no mesmo período, No Natal a Gente Vem Te Buscar e Um Beijo, Um Abraço, Um Aperto de Mão, o núcleo central de sua dramaturgia. Trinta anos depois, quando Aurora volta em formato de musical, constata-se a integridade dramática de um texto que os anos não arranharam. A escrita dos bons e cruéis tempos da escola risonha e franca, em que o bullylng existia mas sem o pedantismo da denominação inglesa, está acondicionada pelas repressões religiosas e sociais da infância dos anos 50. O equilíbrio narrativo que Naum Alves de Sousa conseguiu ao adotar o humor em contraponto a toques dramáticos, mantém a eficácia de comunicação da versão original. A trilha musical de Marcos Leite e Roberto Gnatalli, com letras do autor, acrescenta novo elemento que funciona como intervenção mal absorvida pela estrutura do texto. A música, sem características marcantes – as quase 40 canções variam de ritmos, mas não compõem unidade sonora  dramaticamente reconhecível – se dilui e se esvazia por entre as situações, quebrando o ritmo da cena. A trilha se interpõe à ação como complemento acessório que pouco acrescenta à tessitura desse retrato melancólico e evocativo dos tempos das carteiras escolares. Apesar da superposição musical algo postiça, A Aurora da Minha Vida provoca reação extremamente receptiva, em especial no segundo ato, quando a platéia responde com emoção chorosa o que se passa no palco. Tanto tempo depois de sua estréia e com tantas mudanças na vida cotidiana e escolar, a peça resiste, até mesmo, a esse adereço dispensável. Na direção, Naum domina o seu material dramático confortavelmente. O elenco – Ana Velloso, André Dias, Ester Elias, Helga Nemeczyk, José Mauro Brant, Thelmo Fernandes, Vera Novello e Victor Maia – desempenha como um grupo, harmonicamente integrado, as variações do humor e dos quadros que exigem rápidas mudanças interpretativas. Os atores se desdobram em papéis que pedem  versatilidade, exibida com generosidade.         


Crítica/ 4 Faces do Amor
Jogral da paridade dos afetos 
Esse musical escrito por Eduardo Bakr, em cartaz no Teatro das Artes, é de um tipo particular do gênero. Utilizando músicas selecionados no repertório de Ivan Lins, 4 Faces do Amor é, basicamente, um jogral narrativo que percorre os sentimentos de um casal que, do encontro ao desencontro, vive a convivência na insegurança e com ciúmes. O truque do autor está em que o casal é representado por quatro atores, que se revezam nos papéis, ora como um par formando por gêneros diferentes, ora pelo mesmo gênero. O entrelaçamento é uma forma hábil de unificar, numa relação afetiva de composições diferentes, as mesmas situações afetivas que afligem qualquer casal. De maneira delicada e sutil, evidencia-se a correspondência que ameniza e amplia a paridade dos afetos. A introdução da música, selecionada entre as menos conhecidas de Lins, serve para sublinhar as emoções. Nas canções, as letras são determinantes para que ressoem como extensão das vivências.Talvez não seja um modo muito inventivo de musicar a dramaturgia, mas pela medida e alcance que Bakr parece ter pretendido – a encenação é bastante simples, se concentrando no jogo da duplicidade – a trilha funciona pela oportunidade de encaixar-se como consequência dos diálogos. Mas em relação à música, o destaque é da direção musical de Liliane Secco, que realizou trabalho sofisticado que, não só valorizou as canções, como as encorpou com refinados comentários sonoros. O trio de instrumentistas – Liliane Secco (piano), Kelly Davis (violino) e Fábio Almeida (violoncelo) – é outro ponto a ressaltar. O quarteto de atores – Gottsha, Adriana Quadros, Cristiano Gualda e Mauricio Baduh – canta com expressiva entrega o derramado repertório romântico.              


Cenas Curtas

As queixas sobre os preços dos ingressos de teatro estão sensivelmente arrefecidas. A média de preço da entrada inteira, na maioria dos teatros cariocas, é de R$ 40,00. O bilhete mais caro custa R$ 120,00 e o mais barato R$ 6,00, mas como grande parte do público paga meia entrada, os valores caem 50% nas bilheterias. Algumas salas de espetáculo, aquelas mantidas por instituições bancárias, empresas de telefonia e pela administração pública, mantêm política de preços convidativos. O Centro Cultural Banco do Brasil cobra em seus teatros R$ 6,00 a inteira, enquanto o Oi Futuro, R$ 15,00 e alguns teatros da prefeitura R$20,00, o mesmo preço praticado pelo Espaço Sesc.     

A carência de salas de teatro na cidade parece se agravar. Com o segundo incêndio durante as obras de reforma do Teatro Villa Lobos, não se tem mais previsão de sua reabertura. O desaparecimento do Glória, que gerou promessa de construção de teatro semelhante em outro ponto, caiu no vazio do silêncio. Com a produção sem espaços para se apresentar, as temporadas das montagens ficam cada vez mais curtas – algumas, verdadeiramente meteóricas – sem possibilidades de criar lastro com o público. Em comparação com São Paulo, onde cada  unidade  do Sesc conta com, pelo menos, um teatro, e grandes salas, como o Alfa, o Bradesco e o Raul Cortez podem abrigar produções maiores, o Rio está relegado a ver desaparecer casas de espetáculo e não surgir nenhuma que as substituam.

                                  macksenr@gmail.com

domingo, 23 de outubro de 2011

Outros Palcos


Curitiba

Crítica/ Isso Te Interessa?
Desnudamento de relações banais
Márcio Abreu e a Companhia Brasileira de Teatro, que a partir da capital paraense desenvolvem trabalho consistente de investigação cênica, demonstram com Isso Te Interessa?, uma vez mais, que sua pesquisa segue trilha, generosamente, inventiva. Nas apresentações de um mês no teatro Novelas Curitibanas de Curitiba do texto da francesa Noëlle Renaude (no original, Bon, Saint-Cloud) ficou evidenciado o rigor e a inquietação que marcam os dez anos deste coletivo, que foi gerado e se desenvolveu fora do eixo teatral Rio-São Paulo. A identidade autoral, surgida de movimentos internos do grupo, em que o repertório se consolida através do investimento na linha interpretativa de elenco integrado, atinge com esta montagem refinamento de atuação, que antecipa e aumenta a expectativa para os próximos espetáculos da companhia. Isso Te Interessa? é um texto curioso pela sua quebra narrativa e aspecto reiterativo dos diálogos. Gerações de uma família cumprem, ao longo do tempo, os rituais impostos pela convivência e por separações e desgastes, reforçando, pela continuidade, comportamentos de vidas banais. O texto, sem maiores vôos, é um habilidoso retrato de certa classe média e suas vacuidades, mas que ganha, na direção de Márcio Abreu, dimensão que reflete estranhamentos.  O black-out inicial, que prepara a platéia para a surpresa que se segue, é substituído por quadro em que dois atores, um atuando como o homem, e outro como o cão, iniciam um jogo de afagos. O detalhe é que ambos estão inteiramente nus. Esse artifício, que não está previsto no original, é uma opção do diretor, que, deste modo, ratifica, pelo contraste, o tom rotineiro de existências comuns. A escolha não se assemelha, em instante algum, à procura de qualquer efeito exterior ou de provocação contestatória. Transmite, tão somente, a perspectiva de emoldurar dramaticamente pelo desmonte da imagem (radical, sem dúvida), o verniz protocolar que esconde reais e alienantes atitudes. Outro ponto, virtuosamente instigante, deste Isso Te Interessa? (o título conserva a ironia gaulesa) é o que Márcio Abreu alcança com os atores. As interpretações são de refinado humor e sutil composição corporal, refletindo integração que não permite que haja destaques. Giovanna Soar, Nadja Naira, Ranieri Gonzalez e Rodrigo Ferrarini estabelecem unidade de atuação, em que cada um interpreta com seus recursos bem afiados, imprimindo a particularidade de seus temperamentos de atores, mas a  serviço do ensemble. Em apenas 45 minutos, a Companhia Brasileira de Teatro confirma que atingiu um grau de sofisticação e de crescente depuramento cênico, apontando para possibilidades ainda mais amplas e surpreendentes.                  

São Paulo

Crítica/ A Ilusão Cômica
Representação ilusória de uma fábula teatral
A companhia paulista Razões Inversas, sob a direção de Márcio Aurélio (a equipe montou o bem sucedido Agreste) completa duas décadas com a encenação de texto do francês Pierre Corneille, em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil da capital paulista. Mais uma investida corajosa do grupo, que tem em seu repertório, além da peça de Newton Mendonça, a provocante encenação de Anatomia Frozen (o Rio merecia assisti-la), que prossegue com A Ilusão Cômica a tradição do grupo na exploração de universos poéticos. A narrativa construída por Corneille desvenda um mundo tangenciado pelo teatro, em que a imaginação mágica e os truques da representação compõem etapas de maravilhamento. A memória da commedia dell,arte, o preciosismo verbal de poética metafórica e a fabulação fantástica de imagens e palavras se oferecem como compêndio teatral que se torna espetáculo pela oferta ilusionista de envolvimento. A força comunicativa do texto, que aparentemente pode soar verboso e literário, se prova expressivamente contagiante, o que o transforma em clássico pela sua abrangência e inteireza poética ao longo dos séculos. Na direção de Márcio Aurélio essa idéia de permanência do texto é estendida ao espetáculo que incorpora cada uma das suas atraentes vias. Lá estão as pantomimas de uma representação referenciada à época, e as imagens despojadas, mas eficientes, que apóiam a ação que sustenta a trama. O diretor envolve as camadas narrativas com fluência atualizada para montagem de comédia clássica. Mas por uma série de circunstâncias, que variam da exiguidade do espaço do teatro do Centro Cultura Banco do Brasil paulista à irregularidade do elenco, nem sempre o equilíbrio poético-literário se sustenta, desviando-se, algumas vezes, para regiões menos resolvidas cenicamente, prejudicando, deste modo, o caráter fabular, em especial na virada definitiva proposta na cena final. A tradução de Valderez Cardoso Gomes merece destaque pela sua alta qualidade. As presenças de Joca Andreazza e Lavínia Pannuzio são precisas e estilisticamente irreparáveis, já os demais atores – Paulo Marcello, Maria Stella Tobar, Antônio de Campos, Julio Machado e Gonzaga Pedrosa – têm atuações um tanto irregulares, ainda que não comprometam o maior mérito desta versão de A Ilusão Cômica:  a dignidade com que foi encenado este texto definitivo de Corneille.   

   
Crítica/ As Bruxas de Eastwick
Vôo rasante de bruxinhas provincianas 
A dupla Charles Möeller e Cláudio Botellho, que lidera, numérica e criativamente, a  encenação de musicas no Brasil, assina a montagem nacional de As Bruxas de Eastwick, em cartaz no Teatro Bradesco. A marca do diretor Möeller e do tradutor Botelho pode ser reconhecida. Afinal, constata-se a correção técnica, a qualidade vocal, a cenografia funcional, a escolha adequada do elenco. Então, por que motivo, as bruxas voam tão baixo. A responsabilidade não pode ser atribuída à dupla, que seguiu, com menor autonomia, ao que parece, e alguma desconfiança sobre o material, ao que deixa entrever, mas ao fraco libreto e à corriqueira trilha. As três mulheres, vivendo numa cidadezinha do interior americano, que recebem a visita de demoníaco sedutor, podem ter sido algum interesse no cinema (quem assistiu ao filme fala de boas atuações), mas na virada para o musical são pouco mais do que personagens de uma longa e desinteressante historinha cantada. Apela-se para todo tipo de efeito para jogar fumaça nos olhos da platéia. Recorre-se a fogos de artifício em várias momentos. A atrizes penduradas em fios até voam sobre as cabeças do público. E canta-se, sem que nenhuma das músicas fique retirada nos ouvidos do espectador. Mesmo com respeitável equipe profissional, As Bruxas de Easwtick, com todos os chamarizes e sucessão de clichês, parece não estar agradando aos espectadores paulistas. Numa matinê de sábado, às cinco da tarde, num teatro de quase 1.500 lugares, pouco mais de 200 pessoas se distribuíam pelos diversos setores e andares. O que revela que o público, alimentado continuamente por produções do gênero, se torna cada vez mais seletivo, e procura valorizar seu dinheiro. Os preços dos ingressos variam de R$ 10,00 a R$ 190,00.

                                   macksenr@gmail.com

terça-feira, 18 de outubro de 2011

39ª Semana da Temporada 2011


Crítica/ Filha, Mãe, Avó e Puta
Transposição de um depoimento que mimetiza uma imagem
A produção deste espetáculo em cartaz no Teatro III do CCBB é honesta ao acrescentar ao título a explicação do que se assistirá, efetivamente: a uma entrevista. É a partir de uma série de perguntas de um repórter à Gabriela Leite, personagem real que fala de sua vida no livro Filha, Avó e Puta, que a montagem dirigida por Guilherme Leme procura a teatralização. O material para tal empreitada pode até ter possibilidades cênicas como representação de biografia de alguém que reivindica para si o orgulho no ato de se prostituir, mas o formato jornalístico é pouco maleável à narrativa teatral. Com uma mesa dominando o espaço, o ator assumindo com pouca espontaneidade o papel de repórter, e a atriz mimetizando, no visual,  a verdadeira Gabriela, se estabelece o cenário que condiciona as fases da vida de uma mulher que decidiu se transformar em prostituta. As decisões que Gabriela tomou ao longo de sua existência, que desaguariam na opção profissional, e que a transformaria em líder sindical e diretora de ONG, são detalhadas num sentido exaltativo que, sem restringir a extensão de seu trabalho na defesa da categoria, têm muito pouca potencialidade teatral. O modo como   Gabriela fala de sua condição, parcialmente  justificada pelas circunstâncias de sua vida, soa, algumas vezes, pode ser identificada apenas como uma questão de nomenclatura. Mas esta é a personagem e sua biografia. O que o diretor parece não ter se apercebido é, ao adotar a forma de entrevista, redutora e pouco dramática, reforça as limitações da mera transposição de um depoimento para o palco. Louri Santos é mais perguntador do que personagem. E Alexia Dechamps fica, prudentemente, no limite da discreta sequência de respostas, sem maiores variações interpretativas.     


Crítica/ Como Cavalgar um Dragão
Diálogo, mais ou menos ágil, com o desequilíbrio geracional 
Há neste encenação do Teatro Inominável, em cartaz no Teatro do Planetário, vontade empenhada em realizar algo que seja, tanto depoimento geracional, quanto tomada de posição em relação ao teatro. O grupo, muito jovem, demonstra  ânsia de dizer, sem muita segurança de como o fazer. Grupo de amigos se reúne para dividir, física e emocionalmente, o espólio afetivo de amiga que se suicidou. O encontro, forma de relacionar as lembranças e as repercussões desta morte sobre cada um, também serve para acentuar as contradições da amizade e os efeitos da perda nos sobreviventes. O processo de construção da montagem fica por demais visível por suas hesitações e fraquezas, nas quais a dramaturgia se perde no tom literariamente convencional dos monólogos e, com maior domínio em momentos dos, quase sempre, ágeis diálogos. O autor Diogo Liberano, em processo colaborativo com a diretora Flávia Neves e o elenco, perde a mão, distribuindo as cenas com desequilibrada intensidade – como na cena do telefonema do marido de uma das personagens – e descompassado ritmo. Por maior que seja a sinceridade que o grupo imponha à cena, falta  amadurecimento na  elaboração textual e traços mais fortes na montagem.        

Crítica/ Breve Encontro
Interpretação monocórdia sob o foco do melodrama
A origem é uma peça de Noel Coward (Still Life), e a base da encenação o filme de David Lean (Brief Encounter). Do encontro dessas inspirações que o adaptador e diretor Eduardo Wotzik reescreve cenicamente Breve Encontro, em cartaz no Teatro dos Quatro. As razões pelas quais Wotzik se decidiu por estas referências para criar base teatral que sustentasse sua adaptação se revelam um tanto intrigantes. Pode-se considerar esse melodrama pré-psicológico como história repleta de ganchos narrativos para provocar determinadas reações nas platéias. O texto original e o filme, ambos da década de 40, surgidos numa Inglaterra mergulhada na guerra, são bem característicos da época e do gênero em que foram gestados, baseando-se numa emocionalidade induzida pelo sentimentalismo. A montagem, com tais condicionantes no atual panorama teatral, pode ser vista como reprodução de estilo passadista à procura de platéia nostálgica. Não se sabe a intenção de Eduardo Wotzik, mas pelo que seu espetáculo demonstra, se fixou num plano expressivo híbrido e recursos indefinidos. As cenas, como fotogramas de cinema, se sucedem com cortes marcados pela introdução de elementos cenográficos, de José Dias, sob o fundo negro do palco, complementados pela iluminação de Fernanda Mantovani. Os atores se tornam figuras captadas como imagens, interpretando de maneira quase recitativa e uniforme, insinuando, desta maneira, distância crítica da atuação melodramática. Parece intencional que o melodrama, que está na base narrativa, seja dissipado pelo tom, sutilmente contrário, para assim ser evidenciado, indiretamente. Mas os atores – Carla Ribas, Fernando Arze, Paulo Giardini, Cristina Rudollph e Rubens de Araujo – se apropriam desta linha monocórdia, sem possibilidades de ultrapassá-la. Além do inadequado tipo físico da maioria do elenco, todos se mostram pouco sensíveis ao universo do texto, o que deixa à saída do teatro, a dúvida que acompanha o espectador ao longo do espetáculo. Qual o propósito da direção ao escolher o texto?     


Crítica/ Por Telefone   
Juliana Teixeira e Jandir Ferreira perseguem o riso comercial 
Nos anos 80, o ator Antônio Fagundes mantinha uma companhia que alternava clássicos e textos mais ambiciosos com comédias ligeiras, como Por Telefone, que escreveu para preencher uma dessas alternâncias. Com a ambição de divertir, acima de tudo, mas com alguma vivacidade dramatúrgica e outros pequenos truques, Fagundes escreveu esta vinheta cômica com possibilidades de adquirir fôlego cênico. Para dois atores, a comédia assume ar levemente absurdo, num crescendo no humor que, se não atinge brilho ou inovações, pelo menos respeita a inteligência do público na procura de levá-lo a rir. Longe da gargalhada, Pelo Telefone, em cartaz no Teatro Vannucci, nesta versão dirigida por Luiz Arthur Nunes, pretende cumprir a mesma função de quando foi lançado. Produto comercial, com os atores Juliana Teixeira e Jandir Ferrari, talvez hoje tenha perdido, nas quase três décadas que o separam da sua estréia, o poder de atrair platéias pelas mudanças pelas quais passaram os espectadores de teatro, fartamente municiados, por igual tempo, pela exibição de seriados de televisão.     

                                     macksenr@gmail.com

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

38ª Semana da Temporada 2011


Crítica/ Triste Fim de Policarpo Quaresma
Guerra perdida da desiludida brasilidade  
Até ao seu triste fim, Policarpo Quaresma experimentou, com patriotismo ingênuo, a amarga farsa do exercício da nacionalidade. Vítima de ilusão patriótica, adquire a consciência, herói ridículo da própria invenção de sociedade sustentada por suas raízes fundadoras, de sucessivas derrotas diante de um mundo que o transforma em bufão de suas idéias. O hospício, ao qual é levado por sua defesa da língua tupi-guarani, abriga a primeira decepção, seguindo-se a frustrada tentativa de reformar a agricultura, irremediavelmente vencido pela ação da baixa política e pela voracidade das formigas. Não menos decepcionante é sua adesão à defesa da nação, em revolta separatista, quando fica frente a frente ao poder da corrupção e da comédia da artilharia. Deste percurso, Policarpo conclui que “fizera a tolice de estudar inutilidades”, e que a pátria é pouco mais do que uma quimera. O romance de Lima Barreto, lançado em 1911, trata de um anti-herói, patético em seus propósitos, risível nas suas inalcançáveis pretensões, que desfia fracassos como alguém que foi devorado por um Brasil real, pelo persistente país de fancaria. A adaptação de Antunes Filho, em cartaz no Teatro Nelson Rodrigues, empreende retorno, “o eterno retorno” do diretor às suas obsessões estéticas e aos escaninhos da nacionalidade. É inevitável referenciar a atual montagem à de Macunaíma, que Antunes dirigiu há 33 anos. Se antes, o herói era desprovido de caráter, agora é íntegro, ambos identificados pelas semelhanças do país que os moldou. Se a cena de então determinava poética de brasilidade difusa, hoje se repete com o acréscimo de conotações mais palpáveis. A transcrição do romance, essencialmente descritivo e com poucos diálogos, não intimidou o adaptador, que anteviu as possibilidades de enquadramento na sua rica moldura cênica. Há um tom farsesco, quase picaresco, que se destaca entre tantas outras memórias narrativas, criando humor em contraluz com lirismo. A movimentação dos atores, em conjunto e horizontalidade formal, é marca definitiva do diretor cultivada ao longo de várias montagens. A ausência de cenários, substituídos por adereços, figurinos, máscaras, maquiagem e máquinas de cena, individualiza o grupo, que em bloco ocupa o espaço com furor de personagem-massa. Num destes “quadros vivos”, Antunes Filho reproduz com impacto visual e desenho crítico, as obras pictóricas do positivismo, com sua exaltação à nacionalidade de estampa e de símbolos, e pelotões de vestais patrióticas e lábaros verde e amarelo. A imagética do diretor atinge o arrebatamento, quando ao som do Hino Nacional, Policarpo sapateia como um alegórico dançarino de nossos males. A música, de modinhas, canções militares e valsa, é preponderante no estabelecimento desta atmosfera de brasilidade desiludida, de sonoridade arranhada pela rouquidão da desesperança, como revela o discurso final de Policarpo. Nesta transcrição de Triste Fim de Policarpo  Quaresma por Antunes Filho, a sedimentação da gramática teatral do encenador respira por alguns novos poros, abertos pela inquietação de refletir sobre a nostalgia de um país, arduamente vivido, eternamente irrealizado. O bem orientado elenco realiza com a determinação do que lhe foi proposto a delirante e cética investigação sobre o que somos ou o que irredutivelmente fomos. A projeção, indiscutível, é  do ator Lee Thalor, intérprete inteligente de Policarpo, macunaímica presença como artífice do desencanto.                  


Crítica/ A Alma Imoral

Parábolas de sentimentos no jogo de gerar e evoluir
Como monólogo, baseado em livro do rabino Nilton Bonder, sem qualquer situação dramática que possibilite ação e com referências religiosas que poderiam torná-lo doutrinário. A Alma Imoral, que volta ao Teatro Leblon           em nova temporada, após quatro anos da sua estréia, elabora cada uma dessas características para transformá-las em delicado e sensível espetáculo teatral, no qual a qualidade do texto e a presença de Clarice Niskier são traduzidas em celebração cênica. De início, a atriz chega suavemente para contar como chegou ao texto, a circunstância do encontro num programa de televisão, a dificuldade de explicar a sua dualidade religiosa e a indignação de uma espectadora diante da abrangência de sua fé. Com bom humor, propõe embarcar no ritmo de um pensamento límpido e se deixar levar pela correnteza das palavras. Feita a proposta, começa o espetáculo propriamente. E o despojamento que se pressentia é completado com a primeira e inesperada cena, em que a discussão sobre os contrários (o titulo já prenuncia as inversões que integram corpo e alma) ganha a realidade física da racionalidade expositiva. Sem qualquer sentido normativo, A Alma Imoral estabelece um jogo de oposições que conduz à humanidade das contradições. Corpo e alma, fé e ciência, moralidade e imoralidade, tradição e traição, não são antagonismos, mas complementariedades, à procura de nova linguagem expressiva. A complexidade do mundo, o peso das criações do homem, a fé religiosa, o mal e o bem marcam a dicotomia entre gerar e evoluir. O texto é conduzido por parábolas bíblicas que ilustram os conceitos de manutenção e transgressão, capazes de criar conexões que unificam a existência. Com supervisão de Amir Haddad, que contribuiu para que o impulso cênico de Clarice Niskier se traduzisse em conversa com a platéia, a montagem alcança momentos de emoção destilada pela sinceridade que a atriz empresta ao que diz. Clarice interpreta a poética da escrita, encontrando sua fluência sonora e harmonia verbal, numa transcrição de comunicabilidade quase afetiva. O que pode ser um caminho para explicar os 140 mil espectadores que já assistiram a esse monólogo, e que já percorreu grande parte do pais, com reações sempre muito palpáveis. A conversa sobre sensibilidades, que Clarice Niskier conduz tão amavelmente, merece uma revisão, para que se renove  as emoções que provocou na primeira visão.

                                                         macksenr@gmail.com

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Outros Palcos


São Paulo

Crítica/ Os Náufragos da Louca Esperança 
Discurso onírico da razão utópica
A cena que o Théâtre du Soleil oferece está ritualizada como um teatro de imagens com forte intervenção na complexidade do nosso tempo. A arquitetura estabelecida a cada espetáculo em sua sede, na Cartoucherie, nos arredores de Paris, se reproduz, como num registro fotográfico, nas viagens que o grupo liderado por Ariane Mnouchkine faz pelo mundo. O mesmo camarim-cenário que recebe os espectadores – enquanto o elenco se prepara, o público pode acompanhá-lo antes da entrada em cena, e partilhar o seu silêncio quase religioso – se repete como um código do Soleil, tanto na França, como agora em São Paulo, e de 8 a19 de novembro no Rio, no HSBC Arena. Penetrar neste retrato ilusionista de ressonâncias do mundo que se está deixando lá fora, como acontece em Os Náufragos da Louca Esperança, é tocar a magia do onírico na incessante “busca do humano”. Para tanto, Mnouchkine se apropria do romance de aventuras de Julio Verne, Os Náufragos do Jonathan, que transporta aventureiros rumo a Austrália, que têm a viagem interrompida no sul da América por tormentas que os deixam à deriva em terras geladas de território reivindicado pela Argentina e Chile. A trama de Verne é transferida ao filme, rodado por diretor dissidente da Pathé, no período do cinema mudo. Os percalços da filmagem, em paralelo com os acontecimentos políticos da Europa, que antecederam a eclosão da Primeira Guerra, se interpenetram na construção de dramaturgia cênica, desenhada com irretocável rigor. Nas quatro horas de duração, divididas em dois atos, com dez minutos de intervalo, a impressão inicial é da habilidade em projetar fulgurante cenografia viva, em que mudanças ágeis e manipulação dos adereços impressionam pelo refinamento de uma artífice que utiliza, com  domínio dos meios e invenção dos modos, pulsantes recursos teatrais. A estilização das películas do cinema mudo, a economia das palavras, a aceleração dos movimentos, reproduzindo a forma como os fotogramas eram vistos na época, atingem momentos arrebatadores, dentro de ambientação que reflete a iconografia cinematográfica e visual do início do século 20. A correlação dramática das informações políticas e a representação da feitura do filme, acabam por criar vaga impressão de que o formal pode estar escondendo relativo convencionalismo. A impressão vai se dissipando ao longo da representação, quando se percebe a trilha percorrida, que conduz a platéia pelos meandros de utopias e por caminhos de ideologias perdidas em direção a um farol que ilumina, difusamente, a esperança frente a consciência niilista do naufrágio do humano. O teatro, via cinema mudo, se intromete nesta catedral de apelos aos sentidos e no novelo da razão para nos apresentar uma Europa (a de hoje), que se mistura como a inquietação do pensamento (a de sempre), e remonta a hidra geradora das crises (a do passado). Criam-se sucessivos quadros que explodem como cortes cinematográficos, filtrados pelos bastidores artesanais de uma produção de cinema da segunda década do século passado. O elenco, portador da magia do fazer e desfazer, remonta continuamente os quadros, burilando com cinzel invisível o subterrâneo da narrativa. O fôlego interpretativo dos atores, veículos da desilusão esperançosa, é transmitido à platéia, permanentemente, arrebatada pela vigor do que assiste, e que vai sendo estimulada a encontrar, embalada pela fantasia da invenção e pelo navegar nos desejos do utópico, as razões pelas quais o humano está tão distante de faróis que iluminem caminhos. Um espetáculo essencial.


Os ingressos para a temporada carioca de Os Náufragos da Louca Esperança podem ser adquiridos, a partir de 18 de outubro, no Sesc Copacabana e no Teatro Sesc Ginástico.                         


                                   macksenr@gmail.com

   

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

37ª Semana da Temporada 2011


Algarismo e Correspondência no Espaço Sesc

Crítica/ Um Número
Fluxo de emoções entre corpos e almas
A numeração de tantos eus, multiplicados de um garoto-matriz e gerado de paternidade única, compõe a seriada narrativa da inglesa Caryl Churchill. A proliferação de vidas artificiais, criadas em tubos de ensaio, deixa ver uma identidade que se acrescenta ao corpo de tantos e na mensuração de sentimentos que não se podem clonar. O texto de Churchill especula sobre as consequências de um corpo ser recriado em outro, um quase igual, confrontando quem provocou a transposição e quem a vive. A habilidade da autora está em não se fixar nas questões pretensamente científicas de tal especulação. Muito menos na discussão sobre a ética dessa prática, mas de estabelecer diálogo entre pai, gerador do desejo de permanência, e filho, objeto de identidade difusa. Enquanto um procura, como pode, justificar a sua cruel experimentação, o outro se debate na busca de encontrar razões, no interlocutor e em si, para sua existência. No instável plano do desconhecido, no vago fluxo das emoções, no pantanoso mundo da racionalidade, se desvenda, aos poucos e com fina troca de palavras candentes, o imponderável universo das relações irreproduzíveis de corpo e alma. Um Número, texto inteligente – dois atores, diálogo vibrante, narrativa instigante – é servido por direção, igualmente, inteligente. Pedro Neschling, que dispõe de dois ótimos atores, se concentra na interpretação como centro e eixo da encenação, criando os tempos de passagem e o ritmo interno da montagem, com a sensibilidade exigida pelo texto. Nada se quebra neste embate surdo de físicos e afetos clonados, a não ser os que marcam os rompimentos do percurso até a consciência das diferenças. Essa sutileza de encontrar a racionalidade da autora e as rupturas do desenvolvimento narrativo estão afinados pela direção precisa e na medida. A sugestão cenográfica de Gilberto Gawronski, pedaços desmontados de cadeiras que parecem emergir do solo, reflete a mesma simplicidade intencional do diretor. A iluminação de Adriana Ortiz é decisiva na construção de visualidade dramaticamente desenhada. A música de João Paulo Mendonça complementa os efeitos sóbrios da montagem. A dupla de atores – Pedro Paulo Rangel e Pedro Osório – compõe com a singularidade de seus temperamentos de intérpretes, as individualidades dos personagens. A intensidade controlada de Pedro Paulo Rangel empresta certezas hesitantes ao pai. Pedro Osório, que se distribui por três personagens, caracteriza cada um deles com rigor construtivo, emprestando-lhes peso e volume adequados.     

Crítica/ Cartas de Maria Julieta & Carlos Drummond de Andrade
Conversa epistolar entre corações abertos
A correspondência, desde a infância até o final da vida, de pai e filha, ele poeta, ela escritora, não se restringe ao âmbito literário, mas ao espaço do afeto. É de lá, que saem os primeiros e constantes liames de uma conversa epistolar que acompanhou a ambos, alimentando com carinho, as alegrias e vicissitudes que fazem parte de todas as existências. A pesquisa de Sura Berditchevsky e do filho de Julieta e neto de Drummond, Pedro, perpassa em tempo emocional, a troca de sentimentos que as cartas expressam e a filiação sustenta. São corações abertos, prontos a lançar, ao compasso do cotidiano das vivências, os laços que reforçam prazeres, dores, alegrias, melancolia, até o desaparecimento. Pai e filha teceram o bordado de cada fase de suas vidas, como duradoura prova de amor, que resistiu à distância e a momentos em que a poesia pareceu fugir. Cartas é uma montagem que expõe convivência delicada e docemente familiar, e que atinge a platéia com igual delicadeza e doçura. A seleção, que obedece a cronologia da escrita, demonstra o cuidado dos pesquisadores em ressaltar o que cada carta poderia provocar na arquitetura cênica para ser fruída na mesma sintonia em que foi gerada. A direção conjunta da atriz e de Luiz Fernando Philbert, com a contribuição das imagens de Renato e Ricardo Vilarouca e da cenografia atuante de Bia Junqueira, detalham a evolução de duas vidas que se mantiveram ligadas sem interrupção. A atriz, que se movimenta continuamente, evitando possível rigidez anti-dramática de troca de cartaz, é apoiada pelas projeções e pela mobilidade que a cenografia permite. Sura Berditchevsky conduz, não apenas a correspondência no seu sentido epistolar, mas também aquela que Maria Julieta e Carlos Drummond desenvolveram até a morte. A atriz mantém uniformidade vocal e contenção interpretativa que servem, perfeitamente, ao clima poético que se espalha, suavemente, na cena.          


Festivais em Cenas Curtas

Festa Internacional de Teatro de Angra – No oitavo ano, a Fita da cidade litorânea do Rio selecionou 60 espetáculos que, de 14 a 30 de outubro ocuparão duas tendas e o Teatro Muncipal que será inaugurado durante a mostra. Divididas em várias sessões – Palco Sesc, Transpetro, Cult, Comédia, e Fitinha – as montagens têm, em sua maioria, origem no Rio. A Fita será ainda palco para várias estréias nacionais, como a de Quatro Faces do Amor, com direção de Tadeu Aguiar; O Grande Amor da Minha Vida, comédia de João Falcão, Guel Arraes e Carina Falcão; Getsêmini, de Mário Bortolotto; C’est la Vie, projeto de Ítalo Rossi, interrompido com sua morte, e levado adiante por Gilberto Gawronski e Luiz Fernado Philbert; Não Olhe para Baixo, Você Vai Querer Pular , direção de Duda Ribeiro; Antes, Depois, direção de Olé Erdmann; As Dificuldades de Ser Homem, texto de Domingos de Oliveira, com Pitty Webo e Dado Dolabella; A Volta dos Que Não Foram, do grupo In Cena; Crimes Delicados, texto de José Antônio de Souza; Caixa de Phosphorus, de Renata Mizrahi, direção de Suzanna Krueger; Dois Perdidos Numa Noite Suja, “clássico” de Plínio Marcos, com direção de Gabriel Gracindo; e Namíbia, Não, texto do ator Lázaro Ramos, com Aldri Anunciação e Flávio Bauraqui. A participação internacional conta com dois espetáculos vindos de Moçambique.    

4° Festival Internacional de Artes Cênicas da Bahia – De 22 a 30 de outubro, o Fiac de Salvador reúne 26 espetáculos de sete países. Da Alemanha se apresenta a companhia de dança de Sasha Waltz, e da França  poderá ser vista coreografia de Jerome Bel. Da Argentina,  Espía a una Mujer que se Mata, versão de Tio Vânia assinada por Daniel Veronese, e El Pasadoes un Animal Grotesco, direção Mariano Pensotti. A programação internacional se completa com o Dominio Público, do catalão Roger Bernart, e Coalition produção conjunta das companhias belgas Tristero e Transquinquennal. Entre as montagens nacionais, cinco são cariocas (R&J de Shakespeare – Juventude Interrompida, A Chegada do Lampião no Inferno, Ninguém Falou que Seria Fácil e Ele Precisa Recomeçar, e 45 Minutos). As demais são de Curitiba (Oxigênio), Porto Alegre (DentroFora) e Brasília (Devolução Industrial e O Grande Circo dos Irmãos Saúde). Das montagens baianas foram selecionadas Bença, e o ensaio-processo de Trilogia Remix, ambas do Teatro Olodum, o projeto Plano Piloto, seis solos do grupo Dimenti, e a versão do  diretor Rino Carvalho para Luz Negra, texto do dramaturgo salvadorenho Álvaro Menen Desleal.

14° Festival Recife do Teatro Nacional  - A curadoria este ano do festival pernambucano, que se realiza de 16 a 27 de novembro, procura imprimir na programação o caráter de teatro de grupo, com escolha de coletivos que possam exibir parte do seu repertório. Ainda em processo seletivo, estão sendo convidados cerca de 20 grupos da Paraíba, Ceará, Rio Grande do Sul, Paraná, Rio de Janeiro e São Paulo, além de quatro pernambucanos. Decidida apenas a participação da Tribo de Atuadores Oi Nóis Aqui Traveiz, de Porto Alegre, com Viúvas – Performance Sobre a Ausência, que foi visto no último Poa em Cena, e ambientado numa illha do rio Guaíba, nas ruínas de um presídio. Na capital de Pernambuco, a montagem com texto de Ariel Dorfman será adaptada às ruínas do antigo matadouro de Nascedouro de Peixinhos. O artista local homenageado, uma tradição do evento, será o Grupo de Teatro Vivencial, que atuou entre Olinda e Recife de 1974 e 1982.

Janeiro dos Grandes Espetáculos – Integrante há duas décadas na agenda cultural do verão em Recife, este festival, que durante o primeiro mês do ano apresenta a produção de Pernambuco da temporada do ano anterior, em 2012 consolida a tendência de ampliar o seu alcance. Para além do formato original, estabelece a semana dos curadores, que são convidados a assistir seleta das montagens locais para eventuais participações em mostras nacionais. E o Janeiro dos Grandes Espetáculos está expandindo ainda mais sua programação, com o convite a grupos estrangeiros para integrar a sua grade. 

Porto Alegre em Cena – Com prudente antecedência, ágil capacidade de planejamento, o festival de maior fôlego do país já se movimenta para a 19ª edição, prevista para setembro de 2012. Entre os nomes cogitados, o seu diretor Luciano Alabarse, faz os primeiros contatos para trazer à mostra do próximo ano, dois diretores de língua francesa, que participaram de edições anteriores. O canadense Robert Lepage esteve em Porto Alegre, em 1998, com seu precursor espetáculo multimídia Needles and Opium, devendo voltar com montagem ainda não definida. Um ótimo nome. E o francês Patrice Cheréau, que há dois anos participou como ator da leitura dramática de Le Grand Inquisiteur, e como diretor de La Douleur, com a excelente atriz Dominique Blanc, pode retornar com seu último espetáculo, I Am the Wind. O texto de Jon Fosse, primeira produção dirigida pelo francês em língua inglesa, estreou em Londres, e o crítico do The Guardian destaca a “contracena soberba” entre a dupla de atores, nesta “tocante fábula contemporânea”. Uma aposta certeira. Tomara que esses nomes se concretizem.

                                                    macksenr@gmail.com