sábado, 28 de maio de 2011

Palco Nostálgico


Memória de Rubens Corrêa


Livro/ Um Salto Para Dentro da Luz

As biografias lançadas pela Coleção Aplauso, quase sempre, sintetizam entrevistas com os nomes selecionados, e com maior ou menor habilidade, as reproduzem sem qualquer comentário. É uma opção editorial, que funciona mais como registro de carreira do que propriamente como balanço ou análise da vida profissional. Mas há exceções, como em Rubens Corrêa – Um Salto Para Dentro da Luz, de Sérgio Fonta, não só pelo fato do ator ter morrido em 1996, como o autor procurar imprimir cunho mais jornalístico à biografia. Preso ao tom laudatório e de homenagem reverente – não se fazem apreciações que destoem desta linha –, Sérgio Fonta investe na vida e carreira de Rubens, destacando desde o seu nascimento em Aquidauana, Mato Grosso, passando por sua formação no Internato São José, na Tijuca, e pela refinada educação musical (pensou em ser pianista), até transcrever sua trajetória teatral. Ator de papéis marcantes – do Tablado e da Fundação Brasileira de Teatro, como amador, e do Teatro do Rio ao Teatro Ipanema, como profissional – Rubens percorreu repertório em que valorizou personagens encorpados, como Sade, Artaud, Althusser e autores como Gogol, Arrabal e Beckett. Fonta destaca entre suas interpretações, aquelas que considerou sete maravilhas - Prodígio do Mundo Ocidental, Diário de um Louco, Marat-Sade, O Arquiteto e o Imperador da Assíria, Hoje É Dia de Rock, O Beijo da Mulher-Aranha e Artaud. Apoiando-se em críticas, entrevistas, reportagens, textos de programas e fotos, mapeia as atuações de Rubens no teatro, cinema e televisão, dos anos 50 até aos 90. A personalidade tímida de um homem discreto, bom ouvinte, como mencionam vários entrevistados, Rubens era uma força em cena, ator que buscava no recôndito de seus silêncios e ruídos interiores a explosão dramática para os personagens que interpretava. Sérgio Fonta é criterioso na abordagem de aspectos mais íntimos e repórter seletivo nos depoimentos de amigos e companheiros de palco, que são unânimes em elogiar Rubens por sua dedicação e empenho como arquiteto de exercício existencial da profissão, vivida em permanente vertigem. Como escreve Fonta: “Rubens Corrêa, numa conversa com estudantes de teatro, lembrava fala de personagem da peça Woyzeck  - Cada ser humano é um abismo e a gente tem vertigens quando se debruça sobre eles -, e afirmava que a missão do ator é provocar, dentro de cada espectador, o abismo e a vertigem de seu mergulho em seus personagens. Para que as pessoas pensem, se emocionem e amem com mais intensidade.”   

Rubens como Artaud: encantação metafísica 
Crítica/ Artaud!

Antonin Artaud (1896-1948) não foi uma personalidade criativa amansada pelas pressões que sofreu nos manicômios em que esteve internado ou por outras pressões sociais a que foi submetido ao longo de vida tumultuada. Perseguindo a “metafísica em ação”, Artaud projetava um teatro à procura da totalidade, unindo a idéia de “pensamentos em estado puro” à da “linguagem em forma de encantação”. O espetáculo Artaud! é síntese desse pensamento, fulgurantemente anárquico, diante do qual o espectador contemporâneo não pode deixar de se surpreender. O delírio pessoal e criador de Artaud se articula através da visão da vida e da arte esteticamente definidas, que resulta em formas de expressão de surpreendente alcance como linguagem. Na montagem dirigida por Ivan Albuquerque e interpretada por Rubens Corrêa, fragmentos desse universo múltiplo são oferecidos como tessitura fina de um louco solitário que seu tempo não soube apreender. O recital está dividido em módulos (teatro, loucura, depoimentos, criação), que tecem o rosto contraído de vários Artauds, revelando realidades “pelo direito e avesso”. A alucinação, que o próprio Artaud pretendia que fosse “o principal meio dramático”, acompanha os movimentos de Rubens Corrêa que, com intensidade, desenha os diversos momentos pelos quais o personagem transita, rebuscando as nuanças e os estágios dos estados alucinatórios. A passagem temática é realizada com sutilezas. À explosão inicial, que marca a sua visão de teatro, segue-se crescente dilaceramento representado por tom nervoso e menos tenso. A mudança se processa com os movimentos de mãos de Rubens por trás do encosto de uma cadeira que domina a cena (“meu corpo voa em pedaços”). Evitando o estado de demência, que poderia  conferir um caráter psicológico evidente, o ator preferiu recorrer a seu arsenal técnico e colocar em cena a exposição de suas possibilidades. Pode-se discordar da contenção que não permite que sua linha interpretativa alcance o ponto de quase delírio, mas não se pode negar a competência e a experiência do profissional com suficiente maturidade para sofisticar seus recursos de ator. A disposição das arquibancadas no porão do Teatro Ipanema faz com que o Rubens seja visto pela platéia num plano mais baixo, o que, forçosamente, a faz olhar para o alto. Tal arquitetura dá ao público domínio sobre o ator que, metaforicamente, representaria as mesmas forças repressoras ao espírito livre e incontrolável de Artaud. Com os meios disponíveis, o diretor Ivan Albuquerque construiu espetáculo que se fixa sobre o magnetismo de Rubens Corrêa. E neste sentido, o público não se frustra, já que na emoção de captar as palavras inflamadas de Artaud está a essência da montagem. Ainda que algumas imagens não sejam muito felizes, como a da crucificação e o uso derramado dos gestos, Artaud! revela uma face não tanto provocadora do seu retratado, mas certamente muito sensível.   

Crítica publicada em 1986