quinta-feira, 28 de abril de 2011

Palco Nostálgico

Crítica da primeira versão do musical Evita (1983)

Voz límpida da cantora Cláudia como Eva Duarte e a presença de Carlos Augusto Strazzer como Che Guevara 
A versão brasileira de Evita abala uma das mais fortes místicas do teatro nacional: a de que não temos competência para montar espetáculos musicais ao estilo da Broadway. O espectador que sentado na platéia do João Caetano ousa repetir essa velha conversa estará falseando a realidade, negando uma evidência. Afinal, toda a parafernália técnica – os 82 microfones, as 38 caixas de som, as duas mesas de som de 50 canais, a tela gigante, os cinco canhões de luz, o mecanismo técnico da iluminação – e o corpo artístico – 44 atores e 25 músicos – funcionam com harmoniosa perfeição, como se fossem um só instrumento, afinado por maestro perfeccionista. Quando se diz que os nossos cenotécnicos são inexperientes é recomendável assistir às dezenas de mudanças  de cena, com a subida e descida de telões e telas, a colocação ou retirada de adereços, num verdadeiro trabalho de engenharia e logística. Quando se reclama da incapacidade de nossos atores de interpretarem, cantarem e dançarem ao mesmo tempo, mencionando sempre a falta de tradição brasileira para o musical importado, é bom lembrar que comparando as vozes do elenco  brasileiro com as do inglês – basta ouvir o disco da trilha-sonora original para estabelecer as diferenças -, em alguns casos, até nos saímos melhor. Se Evita prova que há um temperamento brasileiro que pode ser ajustado às rigorosas exigências de perfeição técnica musical, evidencia, por outro lado, que também não estamos assim tão longe do know-how dramatúrgico que permita escrever comédias musicais com temas menos inconsequentes. Como é o caso de Evita, que procura contar a trajetória dessa líder carismática argentina, desde seus tempos de bailarina até a sua morte. O que falta, evidentemente, é sustentação econômica e tradição do público para o gênero.
 Evita, nada mais é do que uma inteligente ópera que utiliza truques básicos de encenação teatral – sequência de cenas curtas e rápidas, construção dramática para fortalecer a personagem-título e um narrador para facilitar a evolução narrativa -, com músicas, nem sempre marcantes, e história que procuram envolver com habilidade, dosando o sagrado compromisso da diversão (lei fundamental do show-business) com a teatralidade de uma personagem forte. A dupla Andrew Llody Webber (música) e Tim Rice (letra), que anteriormente havia escrito outra ópera-pop (Jesus Christ Superstar), mostra indiscutível preferência por personagens destacados, de liderança e reconhecido apelo popular. E mais do que na ópera anterior, Webber e Rice conseguiram transformar Evita, desde sua estréia em 1978, em Londres, numa bem-sucedida empreitada empresarial, já encenada em 15 países  - permanecem, atualmente, cinco montagens em cartaz no mundo – e com possibilidades até de chegar ao cinema, caminho natural das comédias musicais de sucesso. Mas este sucesso, mérito evidente da dupla de autores, dever ser atribuído também ao diretor Harold Prince, que construiu um espetáculo de eficácia no palco.
A equipe de direção brasileira (Maurício Sherman, direção geral, Johnny Franklin, coreografia, Edson Frederico, maestro e diretor musical e Miguel Rosenberg, diretor de cena) fez um trabalho irrepreensível, conjugando toda a complexidade técnica com a necessidade de mostrar alta qualidade artística. Poucas vezes se viu por aqui integração tão perfeita, sem microfones com interferências estranhas, cenários que entram fora de hora, atores que cantam fora do tom, bailarinos que tropeçam em cena, refletores que apagam antes do tempo. Nada disso acontece, pelo contrário, tudo está a tempo e a hora, funcionando sem arranhões, mérito  de uma brava equipe que está envolvida no projeto há cinco meses, e que ao colocar Evita em cena não arriscou que nada ficasse fora do lugar. Mas esta não é a única qualidade da equipe nacional – vieram vários técnicos e diretores estrangeiros para reproduzir a integridade da montagem original – já que, limitada por força de cláusula contratual com os produtores ingleses, não se pode modificar a concepção londrina. Apesar disto, e com o consentimento desses produtores, foram feitos alguns ajustes, como a mudança de ritmo das canções, mas são apenas detalhes, já que o desenho da produção teve que ser seguido à risca.
A orquestra, dispondo de microfones especiais, está competentemente dirigida pelo maestro Edson Frederico, ainda que um tanto abafada em algumas músicas. O coro formado por 34 cantores-bailarinos, que formam o povo argentino, os aristocratas, os familiares de Evita e os militares, é de alto nível técnico e artístico. A cada uma de suas intervenções constata-se que tem a mesma qualidade de similares do eixo West End-Broadway, mercado altamente competitivo e no qual só se sobrevivem os melhores. Dançando e cantando sem qualquer deslize mereceram na noite de estréia, entusiásticos aplausos em cena aberta. Até as crianças, seis ao todo, que nem sempre conseguem ter um comportamento disciplinado no palco, marcam presença dentro do profissionalismo geral da produção.
Sílvia Massari no episódico personagem da amante de Perón, canta muito bem e retira de sua pequena cena as suas melhores possibilidades de atriz e cantora. Hilton Prado, que há anos participou de outros musicais, em Evita se destaca como Magaldi, o homem que ficou na História por ter sido o amante de Eva Duarte. Cantor de boleros no original e de tangos na montagem brasileira, Magaldi é o protótipo do músico de segunda, sem talento. Hilton está perfeito, tirando partido  da sua excelente voz e acentuando a canastrice do personagem. Mauro Mendonça surpreende cantando. Voz potente, ainda que deseducada, não compromete o alto padrão vocal do espetáculo. Mas é como ator que Mauro se sai melhor, compondo um Perón populista, demagogo e ardiloso (na vida pessoal e nas tramas políticas). Carlos Augusto Strazzer tem a difícil tarefa de interpretar Che Guevara, a quem empresta o seu tipo físico e energia dramática. Mas com problemas de modulação de voz, cujo timbra também não é muito agradável para o canto, Strazzer sucumbe em vários momentos a esses problemas incontornáveis.
Cláudia a grande surpresa de Evita. Voz límpida, brincando com toda a complexidade da maioria das canções, revelando-se uma presença de palco sensível, dançando com razoável desenvoltura, Cláudia faz o que quer com sua voz privilegiada, sustentando notas altas da mesma forma como sussurra pequenas frases musicais. Definitivamente incorporada à comédia musical brasileira, a cantora tem todas as condições de fazer uma fulgurante carreira no palco, o que, inexplicavelmente, não aconteceu no disco. Um nome consagrado.
Evita prova, portanto, que o artista brasileiro possui múltiplas possibilidades de consolidar-se na linguagem musical, desde que sejam fornecidas estruturas de trabalho para criar aqui qualquer comédia musical americana ou inglesa. Resta apenas saber se, para além dessa capacidade mimética, esse quadro de excelente profissionais terá possibilidades de conseguir maior espaço de criação para obras do gênero geradas nas nossas fronteiras. Evita é um atestado de que é possível fazer (e muito bem). Agora é só dar continuidade.


macksenr@gmail.com